a porta, esta é a porta, abria-se devagarinho para o terreiro, à
esquerda as barracas, à direita a lavandaria, a prisão, a enfer-
maria e o forno, depois de tantos anos, tantos, que fiquei per-
sonagem da minha história e recordo-me com uma estranheza
brutal que o tempo foi construindo, recordo o mcdonald´s, o
anúncio vermelho e amarelo e por baixo do M, a letras negras
e tão legíveis, Mauthausen 1 Km, uns americanos comiam ham-
búrgueres, abrigados na sombra do cartaz onde se anuncia de-
pois da palavra Mcdonald´s que Mauthausen fica a um quiló-
metro, e é tão perto Mauthausen, mas eu estou tão cansado, vim
a pé da estação, queria sentir o mesmo cansaço que sentira, os
pés a incharem-se nos sapatos por causa do calor, da humida-
de deste outono, parou de chover há pouco e alguns pingos
desprendem-se das árvores e rebentam na folha podre no chão,
um cai na aba do meu chapéu, num som de feltro a ensopar, os
cogumelos ladeiam o caminho com os seus umbráculos cheios
de gotículas, eu arranco-as com a bengala, paro para os arran-
car, afinal um quilómetro é tão longe, tudo é tão longe quando
a memória arrasta o presente para o passado e deixa à minha
volta um tempo raso, onde as casas nem habitadas são por fan-
tasmas e sombras, somente as janelas escancaradas para um
cheiro a cimento e a tinta, a madeira acabada de pintar, que é
o cheiro da desolação, afinal a desolação não é a morte, nem a
doença, mas um espaço à espera da sua habitação, como nos
subúrbios os prédios amparados por andaimes, essas casas que,
mesmo cheias de gente, parecem repelir os gestos e vozes, mu-
múrios e segredos, riso e cansaço, estou tão cansado, o presen-
te é um lugar onde me perco, nada me é mais estranho que os
jardins aninhados nos seus labirintos, os cães a ladrarem à mi-
nha passagem, as portas acabadas de fechar, o seu rancor mu-
do, as caras que através dos vidros olham a rua e me olham na
rua, sou uma coisa da rua, tenho a minha hora certa, sou um
invólucro onde se agarram as historias que inventam,
Que quer?
olho a mulher e sei que a pergunta é uma repetição, ela tem pa-
ra trás um escuro que teve tempo de se tornar acolhedor, uns
segundos são a pequena história deste escuro,
Que me quer?
Não a vim procurar minha senhora,
Então, procura quem?
este homem está perdido, olha em volta como se conheces-
se o lugar,
Conheço-o,
Conhece-me, minha senhora?
Vejo-o todos os dias de manhã, a descer a rua,
Esta rua não desce nem sobe, quer a senhora dizer que me vê
a afastar-me da casa,
afasto-me de todas as casas, quando dou por mim, já uma ca-
sa ficou para trás e eu volto-me para trás para ver a porta que
se acabou de fechar, embora eu nunca ouça fechar-se a porta,
sou tão distraído, sou tão distraído minha senhora que devo ter
confundido esta casa com outra, com a sua, é o mais provável,
com a minha, não, quem sabe? talvez queira entrar, ver como
vive, esperar que me convide para almoçar, sentar-me à sua
mesa, conversar com os seus filhos, beber o café a ouvir o mas-
sig schnell, da 2ª de hindermith, todas as vidas me fascinam, es-
sa intimidade que têm as vidas dos outros, dos que não conhe-
cemos, mas é tudo mentira, não é, minha senhora?, só porque
não são nossas essas vidas, só porque não as conhecemos, é
que as achamos fascinantes, como os lugares que nunca visi-
támos, ou os amantes que nos morreram antes do ódio,
Quer entrar?
Não
Quem é?
perguntam de dentro
É o homem de fato completo
Que é que ele quer?
Não sei
Manda-o embora
O meu nome, não lhe interessa sequer o meu nome?
Tanto me faz
Manda-o embora, já te disse
Feche a porta, minha senhora
Não sou capaz de a fechar enquanto estiver aí, a olhar-me
Fecho os olhos, vou fechar os olhos
Vá-se embora, peço-lhe
Então?
Não quer saber onde moro? Como é a minha casa? É uma ca-
sa vazia, num prédio onde ainda moram alguns velhos, tem mui-
ta luz, que entra pelas janelas e não encontra obstáculo, porque
ao longo dos anos me fui libertando de tudo, primeiro de gente
e depois de móveis, eram móveis grandes que me tinham deixa-
do, vieram de pessoa em pessoa até ficarem na minha casa, des-
polidos e velhos de gestos que eu desconhecia, de histórias, de
todas essas coisas que se agarram aos objectos, não coisas nem
factos fascinantes, mas vidas pobres que os empobreceram, há
objectos que se enriquecem com o tempo, outros porém estão
sempre a empobrecer-se, ficam estragados e bons para o ferro-
-velho, ou o adelo, onde os vão comprar aqueles que ainda con-
seguem dar-lhes mais pobreza, há assim uma lógica no mundo,
não é verdade minha senhora?, uma lógica que encerra a po-
breza na pobreza, por isso deitei fora todos os objectos, até as sa-
las ficarem do tamanho de um som, tornei os sons os movéis da
minha casa, hoje de manhã, por exemplo, ouvi o requiem de du-
ruflé, não é que eu goste assim tanto de duruflé, mas a soprano
é a kiri te kanawa e o barítono o siegmund nimsgern, não sei se
os conhece, quero dizer, se os costuma ouvir, não me responde,
está bem, já estou habituado a que não me respondam, ah, a
porta está fechada, nem a ouvi fechar-se, acontece-me com tan-
ta frequência estar frente a uma porta fechada, ou porque lhe
vou bater ou porque acabaram de me bater com ela na cara, às
vezes até é a minha porta que durante uns segundos não reco-
nheço, são uns segundos apenas em que eu, a porta, o mundo,
estamos para ali, como coisas que por acaso se encontraram
juntas, sem que se consiga saber a lógica de semelhante ajun-
tamento, já em criança me diziam: aéreo, és um aéreo, palavra
engraçada, esta, adivinham talvez o meu fascínio pelos sons,
todos os sons, o inverno para mim é por isso a melhor época, há
tantos sons no inverno, é a estação dos sons, sons que se mo-
vem, sons que se arrastam, sons parados, sons que se ampliam
e sons que se retraem, sons que morrem e sons que nascem, vou
de inverno em inverno, abandono um país quando a primavera
começa e chego a outro no princípio do inverno, e chego como
se chegasse a uma casa, a minha casa, entro no inverno como
quem entra numa sala acolhedora, e sento-me no inverno, que
é um jardim cheio de neve, com os seus corvos, está frio, come-
çou a esfriar e a porta fechada faz-me ainda mais frio,
lá em cima, atrás dos vidros da janela, a mulher espera que o
homem de fato completo se afaste da porta, ela sabe como ele
se há-de afastar, será de costas viradas para a sebe e a cabeça
voltada para cima, recuará afastando as gralhas numa fuga es-
pavorida até ao portão, e com a mão atrás das costas abrirá o
portão, e sairá para o passeio, e ficará parado no passeio, a
sombra de uma nuvem a passar por ele
Rui Nunes
Ouve-se sempre a distância numa voz
Relógio D´água, 2007
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