Como se a morte já a habitasse, a sala, o quarto, os móveis, uma es-tranha fixidez de tudo num ponto longínquo da memória. Havia em baixo um restaurante, nós íamos lá às vezes, jantei só. A sala estava quase deserta, enchia-se ao almoço, gente que trabalhava ali perto. Mas a minha solidão não era bem triste. Mais profunda, radical, o súbito terror do desamparo, o súbito rompimento das mil ligações invisíveis - se tu morresses. Era a instantânea evidência do refluxo a mim próprio de tudo quanto de mim ia à vida procurar um apoio, se não penso nele, mas ele está. Quanta coisa impensada nos sustém de pé, eu não sabia. Há um equilíbrio de nós próprios em mil finíssimos invisíveis sustentáculos, nós não sabemos. E de repente a rotura, como à pressa sem vontade, não me apetece passear, reentro em casa - se tu morres. Somos pois feitos da nossa ficção, uma fracção enorme de nós é propriedade dos outros, mas o que é estranho é que. Como é que tu estavas tanto na passagem de mim à vida? Subitamente a casa toda, os móveis, os puxadores das portas, não apenas aquilo em que estavas tu, mas até mesmo aquilo em que não estavas. Subitamente tudo me aparece impregnado da tua presença, pegado a ti, e tu não estás lá. Subitamente, um intervalo de mim às salas às portas às paredes. Eu dizia a mim mesmo que voltarias e a tua presença impregnaria tudo de novo, eu dizia, eu dizia - que é que no fundo de mim não acreditava? Xana podia ter ficado comigo, mesmo talvez com o seu preto Tobias, ela devia saber. Mas um filho é também uma nossa ficção, estou só. Tento ler, tento ouvir rádio, tenho uma pedra no crânio. Rígida nítida absoluta. Sem uma fenda por onde passe uma ideia estranha a ela. Os carros passam em baixo na avenida com o seu pânico. A cidade está toda acesa nas ruas, nas janelas, e é assim mais visível a sua auréola de loucura.
Vergílio Ferreira
para sempre
Bertrand Editora, 1999
Vergílio Ferreira
para sempre
Bertrand Editora, 1999
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