Anti-elegia para o meu final

Há-de surgir o dia em que a memória
será um salão vago de onde levaram
os móveis, os espelhos, o riso que ecoava,

e os rios deixarão de correr só um momento
e um veleiro arderá suspenso em suas rotas
com uma chama fria, foto de um instante

congelado no tempo em que os rostos são
um pira, onde o lume de neve os queimará
sem ruído e sem pena, porque tudo se gasta,

e as palavras, que deram nome a seres e a coisas,
serão a nulidade mais cansada
e, por tanto as saber, as escusava,

e nada ser verdade senão a hora breve,
mesmo essa sem mais importância,
que é de imagens que os olhos sobrevivem

e fugazes se tenham ido a correr,
e ninguém pertencendo, nem mesmo a elas,
porque o passado então será

inútil o futuro, e o presente arderá,
e rio-me com esta subversão, este fósforo,
esta chama de tempo confuso

diante de um antigo deus que usava
lítico em seus altares
o tempo como um ceptro poderoso.



Nuno Dempster
Dispersão - Poesia Reunida
Edições Sempre-Em-Pé, 2008

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