Duas vezes que falhei de nem sequer tentar.
Duas vezes que tentei de nem sequer falhar.
Partido como um bolo de resto de festa, um resto de festa,
um resto de bolo partido, triste e seco
para uso fácil de sonolenta e derradeira graçola
como se eu fosse de atirar e ser usado, como se eu fosse ocasião
para derradeira partida, antes de partir.
Lento resto
como um insistente projecto, um lembrete
obstruente, uma porção que se deixou porque se não quis,
ou então se esqueceu porque os olhos já tardam
e apenas resta o miúdo mal comportado de jantares filantrópicos
ou o velho sebento pontual em intervalos de escola,
o agrafo falhado, aquele que fica a olhar imbecilmente
para as coisas, a aberração do circo vitoriano,
a aberração sobre a qual se fecha a luz à noite
depois de escoados os visitantes
e findo o dia da visita
que atrás de si deixou um chão imundo
e um silêncio de esquinas esquivas e deprimidas.
Este ter de durar pela bateria.
Este ter de durar até um dia.
O fardo desta quietude eterna, disse Keats, mas esta morte
tão movível, esta morte bicho espectacular
de patas de veludo e um focinho que revolve
na terra o cuspo da alma
e lhe extrai vértebras e minérios.
Ou o grande mamífero marinho, o rei branco do norte
rasgando-nos as carnes num sorvedouro:
o sistema é uma máquina de matar.
Este ter que arcar com o mundo,
um mísero atlético levando aos ombros os ombros de Atlas,
carregando tudo quem nada é,
carregando variações, acelerações, má mecânica,
a influência astral
no que é super-mecanismo, má sina
no que é matemática. Ou então, já quando não a espero,
a Razão entra-me pela casa contrita e esquálida
como uma razão pródiga, emocional.
Anuncia-me noivado com um tal Ímpeto
e eu fico a olhá-la a recordar-me
de quando era razão sólida e prometedora
e fazia calar os tabernáculos com as suas alegorias
e as suas digressões e vestia roupa modesta e apropriada.
Eu gostava desta minha filha Razão.
Agora não. Agora ela vai-se e outro gostará mais dela
assim, sem mim, ou comigo à parte.
Triste pai sem razão. Lear temporão e patético. Outono do mundo.
Ou figura de urso.
Eu sou a estação que vem com pressa e sai dos primeiros comboios
e instala nas cidades a sua opacidade cris. Eu sou a patrulha da lua,
a lânguida reza que o vagabundo faz a lojas de retrosaria
no seu curso compassado e sem destino
de sacas e alinhavos.
Eu sou o que não sou.
Como um poeta romântico no hospício do céu,
um ferreiro que na fornalha de Hefesto malhasse os versos,
estrelas, a trovoada no Cáucaso, os bíceps a Ájax,
ou um maço que visse numa cornija o bico do gavião
persigo essa insalubridade nos fenómenos
detendo-me nos espigões hebetados o passeio do dedo,
receando o contacto com nóveis musas. Oh, abjuro a musa
por tudo o que ela me fez de mal!
- Oh, sim! esquece essa Júlia que te amolgou o coração
e aceita o grande deus surdo
do cimento, deus tocável e concreto
- que o cimento ganhou formas com que a forma não contava,
o cimento reina solo.
Este teimar na desproporção ou este crónico desapego:
puxar atlânticos com o músculo de uma ideia,
ou como um caterpillar a derribar casas de bonecas
pôr na miudez o tanto,
exagerado no excesso e no defeito
concentrando um física imoderada no meu pequeno mundo
como se esperasse ser surpreendido pelas coisas
e não esperasse senão a surpresa.
Ou então não. Ser simplesmente mal usado.
Eu que podia ter sido tão mais e fui tão menos.
Eu que por momentos descalço as mitenes
e retiro o gorro, tiara de vagabundos,
e permito que o sol me beije a pele curtida
segunda vez.
Eu sei lá.
Se eu fosse ponte o rio secaria.
Se eu fosse antílope o leão enjoaria.
Se eu fosse Társis Nínive floresceria.
Fosse o que fosse que eu fosse
a tristeza cravaria as suas garras de tristeza
como um ancinho afiado
na terra
queimando e salgando tudo em volta
como uma peste infernal apossando-se das raízes.
Daí que eu seja um mal que só se possa cortar pela raiz.
Ou nem isso. Talvez mal não haja, mau não seja:
apenas pura tristeza.
Ó deuses, é isto a seretonina, ou quê?
Ponho a mão do lado direito
da face: tapo um olho
e não é metade o que vejo
nem reduzo a tristeza a seja o que for.
E se descruzo as pernas e as volto a cruzar
não muda em nada a minha condição
porque apenas transito o físico da dor
e não a dor em si mesma
se é que se pode pôr as coisas assim.
Vou folheando o meu livro de horas
à procura de luz nas palavras: não há luz
nas palavras.
É. Talvez seja da luz, talvez seja de lá.
Acendo o gás de cerveja:
ascenderá.
Penso se há gema que tenha regresssado ao ovo;
não sei, sei lá.
A empregada passa e veste de preto,
há gente que passa e a gente passa o preto,
vou a tomar do meu café e me parece mais preto,
tento aclarar as ideias: a gerência é curdistanesa
e tisnados todos os seus movimentos;
digo: não pode ser:
e redentora lá está a televisão
com o clarão do jogo de hóquei no gelo
(procuro mais uma obsessão no frio
mas dou-me descanso e não me incomodo);
entro de novo (não é que tivesse saído),
entro e saio como uma corrente de ar,
entro e saio no que posso sem perguntar,
esfrego os pulsos entre si e penso
que se ao menos como um castor ali erigisse meu dique!...
A diurese lembra-me de mim:
mijo e perscruto no escroto quem sou
(fecho o fecho, lavo-me nas mãos
a água fria, volto a sentar-me),
as minhas costelas em braille
não são leitura para ninguém
e nos dedos os dias como dias que vieram
de outros dedos de outros dias.
Com o ápice da língua embotado lambo
agulhas,
a concatenação de unhas.
E o sono é de acrílico: um enorme bicho transparente
de matéria sintética e espirros de tinta preta
e um fémur intenso e um rádio frenético.
Olho pela janela cansada - vontade de a defenestrar!
O estado da insónia é uma transição
entre o mundo dos mortos e o dos corpos incorruptos
- pelo menos é o que me apetece dizer.
A raíz de cimento do meu canto insone
um caule encaniçado
doravante outrora
e os pulsos calafetados de um tentamen falhado
e uma enfermaria acordada
- toda a minha escrita uma enfermaria acordada.
E o inverno há-de chegar
carregado, tisnado
como um códice ou um livro de termos,
o inverno há-de chegar, o inverno há-de chegar
à psicologia frívola e à de altas temperaturas.
Até a Laodiceia há-de chegar, a tudo este inverno há-de chegar:
ao colibri e ao collant.
É já cansado de escrever que vejo
esta irmandade de ovelhas
ou um aeroporto estrénuo
ou um morcego ressacado que acorda
num estremunhar de asas.
É já cansado de escrever que me deixo entrar
nos paraísos dos torniquetes enferrujados,
na tectónica tensão
e aí esqueço nos colarinhos de gabardina
as quilhas de grandes navios
e o útero medonho,
cicatriz que se cobre com um lenço.
Eu que conhecia a solidão
conheço-lhe agora o plantão.
Daniel Jonas
Os Fantasmas Inquilinos
Livros Cotovia, 2005
Sem comentários:
Enviar um comentário