«O Hospital em que trabalhava era o mesmo a que muitas vezes na infância acompanhara o pai: antigo convento de relógio de junta de freguesia na fachada, pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos de calmantes, o sorriso gordo do porteiro a arrebitar os beiços para cima como se fosse voar: de tempos a tempos, metamorfoseado em cobrador, aquele Júpiter de sucessivas faces surgia‑lhe à esquina da enfermaria de pasta de plástico no sovaco a estender um papelucho imperativo e suplicante:
– A quotazinha da Sociedade, senhor doutor.
Puta que pariu os psiquiatras organizados em esquadra de polícia, pensava sempre ao procurar os cem escudos na complicação da carteira, puta que pariu o Grande Oriente da Psichiatria, dos etiquetadores pomposos do sofrimento, dos chonés da única sórdida forma de maluquice que consiste em vigiar e perseguir a liberdade da loucura alheia defendidos pelo Código Penal dos tratados, puta que pariu a Arte Da Catalogação Da Angústia, puta que me pariu a mim, rematava ele ao embolsar o rectângulo impresso, que colaboro, pagando, com isto, em lugar de espalhar bombas nos baldes dos pensos e nas gavetas das secretárias dos médicos para fazer explodir, num cogumelo atómico triunfante, cento e vinte e cinco anos de idiotia pinamaniquesca. O olhar intensamente azul do porteiro‑cobrador, que assistia sem entender a uma maré‑baixa de revolta que o transcendia, embrulhava‑o num halo de anjo medieval apaziguante: um dos projectos secretos do médico consistia em saltar a pés juntos para dentro dos quadros de Cimabue e dissolver‑se nos ocres desbotados de uma época ainda não inquinada pelas mesas de fórmica e pelas pagelas da Sãozinha: lançar mergulhos rasantes de perdiz, mascarado de serafim nédio, pelos joelhos de virgens estranhamente idênticas às mulheres de Delvaux, manequins de espanto nu em gares que ninguém habita. Um resto agonizante de fúria veio girar‑lhe ao ralo da boca:
– Senhor Morgado, pela saúde dos seus e meus tomates não me lixe mais com o caralho das quotas durante um ano e diga à Sociedade de Neurologia e Psiquiatria e amanuenses do cerebelo afins que metam o meu dinheiro enroladinho e vaselinado no sítio que eles sabem, obrigadíssimos e tenho dito ámen.
O porteiro‑cobrador escutava‑o respeitosamente (este gajo deve ter sido na tropa o pide favorito do sargento, descobriu o médico) reinventando as leis de Mendel à medida do seu intelecto de dois quartos com serventia de cozinha:
– Topa‑se logo que o senhor doutor é filho do senhor doutor: uma ocasião o paizinho amandou o fiscal fora do laboratório pelas orelhas.
De azimute voltado para o livro do ponto e um seio de Delvaux a esfumar‑se no canto da ideia, o psiquiatra apercebeu‑se de súbito da admiração que as proezas bélicas do progenitor haviam disseminado, por aqui e por ali, na saudade de certas barrigas grisalhas. Rapazes, chamava‑lhes o pai. Quando vinte anos atrás o irmão e ele se iniciaram no hóquei do Futebol Benfica, o treinador, que partilhara com o pai Aljubarrotas áureas de pauladas no toutiço, retirou o apito da boca para os avisar com gravidade:
– Espero que saiam ao João, que quando tocava a Santos era lixado para a porrada. Em 35, no rinque da Gomes Pereira, foram três da Académica da Amadora para São José.
E acrescentou baixinho com a doçura de uma recordação grata:
– Fractura de crânio, no tom de voz em que se revelam segredos íntimos de paixão adolescente, conservada na gaveta da memória que se dedica às inutilidades de pacotilha que dão sentido a um passado.
Pertenço irremediavelmente à classe dos mansos refugiados em tábuas, reflectiu ele ao assinar o nome no livro que o contínuo lhe estendia, velho calvo habitado pela paixão esquisita da apicultura, escafandrista de rede encalhado num recife de insectos, à classe dos mansos perdidos refugiados em tábuas a sonharem com o curro do útero da mãe, único espaço possível onde ancorar as taquicárdias da angústia. E sentiu‑se como expulso e longe de uma casa cujo endereço esquecera, porque conversar com a surdez da mãe afigurava‑se‑lhe mais inútil do que socar uma porta cerrada para um quarto vazio, apesar dos esforços do sonotone através do qual ela mantinha com o mundo exterior um contacto distorcido e confuso feito de ecos de gritos e de enormes gestos explicativos de palhaço pobre. Para entrar em comunicação com esse ovo de silêncio o filho iniciava uma espécie de batuque zulu ritmado de guinchos, saltava na carpete a deformar‑se em caretas de borracha, batia palmas, grunhia, acabava por afundar‑se extenuado num sofá gordo como um diabético avesso à dieta, e era então que movida por um tropismo vegetal de girassol a mãe erguia o queixo inocente do tricot e perguntava:
– Hã?, de agulhas suspensas sobre o novelo à laia de um chinês parando os pauzinhos diante do almoço interrompido.
Classe dos mansos perdidos, classe dos mansos perdidos, classe dos mansos perdidos, repetiam os degraus à medida que os subia e a enfermaria se aproximava dele tal um urinol de estação de um comboio em marcha, chefiada por uma vaca sagrada que a fim de descompor as subordinadas retirava a dentadura postiça da boca, como quem arregaça as mangas, para aumentar a eficácia dos insultos. A imagem das filhas, visitadas aos domingos numa quase furtividade de licença de caserna, atravessou‑lhe obliquamente a cabeça num desses feixes de luz poeirenta que os postigos de sótão transformam numa espécie triste de alegria. Costumava levá‑las ao circo na tentativa de lhes comunicar a sua admiração pelas contorcionistas, entrelaçadas em si próprias como iniciais em ângulo de guardanapo e detentoras da beleza impalpável comum aos hálitos de gaze que anunciam nos aeroportos a partida dos aviões e às meninas de saias de folhos e botas brancas a desenharem elipses às arrecuas no rinque de patinagem do Jardim Zoológico, e desiludia o como uma traição o estranho interesse delas pelas damas equívocas, de cabelos loiros com raízes grisalhas, que amestravam cães melancolicamente obedientes e uniformemente horrorosos, ou pelo rapazinho de seis anos a rasgar listas telefónicas no riso fácil dos guarda‑costas em botão, futuro Mozart do cassetete. Os crânios daqueles dois seres minúsculos que usavam o seu apelido e lhe prolongavam a arquitectura das feições surgiam‑lhe tão misteriosamente opacos como os problemas de torneiras da escola, e espantava‑o que sob cabelos que possuíam o mesmo odor dos seus grelassem ideias diversas das que penosamente armazenara em anos e anos de hesitações e dúvidas. Surpreendia‑se que para além de tiques e de gestos a natureza se não houvesse empenhado em transmitir‑lhes também, a título de bónus, os poemas de Eliot que conhecia de cor, a silhueta de Alves Barbosa a pedalar nas Penhas da Saúde, e a aprendizagem já feita do sofrimento. E por detrás dos sorrisos delas distinguia alarmado a sombra das inquietações futuras, como no seu próprio rosto percebia, olhando‑o bem, a presença da morte na barba matinal.
Procurou na argola das chaves a que abria a porta da enfermaria (o meu lado de governanta, murmurou, a minha faceta de despenseiro de navios inventados disputando aos ratos as bolachas‑maria do porão), e entrou num corredor comprido balizado por espessas ombreiras de jazigo atrás das quais se estendiam, em colchas duvidosas, mulheres que o excesso de remédios transformara em sonâmbulas infantas defuntas, convulsionadas pelos Escoriais dos seus fantasmas.
A enfermeira‑chefe, no seu gabinete de Dr. Mabuse, recolocava a dentadura postiça nas gengivas com a majestade de Napoleão coroando‑se a si mesmo: os molares ao entrechocarem‑se produziam ruídos baços de castanholas de plástico, como se as suas articulações fossem uma criação mecânica para edificação cultural de estudantes do liceu ou dos frequentadores do Castelo Fantasma da Feira Popular, onde o cheiro das sardinhas assadas se combina subtilmente com os gemidos de cólica dos carrosséis. Um crepúsculo pálido boiava permanentemente no corredor e os vultos adquiriam, aclarados pelas lâmpadas desconjuntadas do tecto, a textura de vertebrados gasosos do Deus rivegauche do catecismo, que ele imaginava sempre a evadir‑se da colónia penal dos mandamentos para passear livre, nas noites da cidade, a cabeleira bíblica de um Ginsberg eterno. Algumas velhas, que as castanholas bocais do Napoleão haviam despertado de letargias de pedra, chinelavam ao acaso de cadeira em cadeira idênticas a pássaros sonolentos em busca do arbusto onde ancorar: o médico tentava em vão decifrar nas espirais das suas rugas, que lhe lembravam as misteriosas redes de fendas dos quadros de Vermeer, juventudes de bigodes encerados, coretos e procissões, alimentadas culturalmente por Gervásio Lobato, pelos conselhos dos confessores e pelos dramas de gelatina do dr. Júlio Dantas, unindo fadistas e cardeais em matrimónios rimados. As octogenárias pousavam nele os olhos descoloridos de vidro, ocos como aquários sem peixes, onde o limo ténue de uma ideia se condensava a custo na água turva de recordações brumosas. A enfermeira‑chefe, a cintilar os incisivos de saldo, pastoreava aquele rebanho artrítico enxotando‑o a mãos ambas para uma saleta em que o televisor se avariara num harakiri solidário com as cadeiras coxas encostadas às paredes e o aparelho de rádio que emitia, com sobressaltos felizmente raros, longos uivos fosforescentes de cachorro perdido na noite de uma quinta. As velhas tranquilizavam‑se a pouco e pouco como galinhas salvas da canja na capoeira de novo em sossego, mastigando a pastilha elástica das bochechas em ruminações prolixas sob uma oleografia piedosa na qual a humidade devorara os biscoitos das auréolas dos santos, vagabundos antecipados de um katmandu celeste.
A sala de consultas compunha‑se de um armário em ruína roubado ao sótão de um ferro‑velho desiludido, de dois ou três maples precários com o forro a surgir dos rasgões dos assentos como cabelos por buracos de boina, de uma marquesa contemporânea da época heróica e tísica do dr. Sousa Martins, e de uma secretária que abrigava na cavidade destinada às pernas um cesto de papéis enorme, parturiente carunchosa afligida por um feto excessivo. Em cima de um naperon enodoado uma rosa de papel cravava‑se na sua jarra de plástico como a bandeira remota do capitão Scott nos gelos do pólo Sul. Uma enfermeira parecida com a D. Maria II das notas de banco em versão Campo de Ourique comboiou na direcção do psiquiatra uma mulher entrada na véspera e que ele não observara ainda, ziguezagueando de injecções, de camisa a flutuar em torno do corpo como o espectro de Charlotte Brontë vogando no escuro de uma casa antiga. O médico leu no boletim de internamento «esquizofrenia paranóide; tentativa de suicídio», folheou rapidamente a medicação do Serviço de Urgência e procurou um bloco na gaveta enquanto um sol súbito aderia, jovial, aos caixilhos. No pátio em baixo, entre os edifícios da 1.a e 6.a enfermarias de homens, um negro de calças pelos joelhos masturbava‑se freneticamente encostado a uma árvore, espiado com gáudio por um grupo de serventes. Adiante, perto da 8.a, dois sujeitos de bata branca erguiam o capot de um Toyota para lhe examinar o funcionamento das vísceras orientais. Estes amarelos sacanas começaram pelas gravatas ambulantes, já nos colonizam de rádios e automóveis e qualquer dia fazem da gente os kamikazes de Pearl Harbour futuras; marralhos para dar com os cornos nos Jerónimos no verão, a dizer banzai, quando casamentos e baptizados se sucedem em ritmo trepidante de metralhadora mística. A doente (quem entre aqui para dar pastilhas, tomar pastilhas ou visitar nazarenamente as vítimas das pastilhas é doente, sentenciou o psiquiatra no interior de si mesmo) apontou‑lhe ao nariz as órbitas enevoadas de comprimidos e articulou numa determinação tenaz:
– Seu cabrão.
A D. Maria II encolheu os ombros a fim de bolear as arestas do insulto:
– Está nisto desde que veio. Se assistisse à cena que ela armou para aí com a família o senhor doutor até se benzia. De curtas e compridas tem‑nos chamado de tudo.
O médico escreveu no bloco: cabrão, curtas, compridas, riscou um traço por baixo como se preparasse uma soma e acrescentou em maiúsculas Caralho.
A enfermeira, que lhe espreitava sobre o ombro, recuou um passo: educação católica à prova de bala, supôs ele medindo-a. Educação católica à prova de bala e virgem por tradição familiar: a mãe devia estar rezando a Santa Maria Goretti enquanto a fazia.
A Charlotte Brontë a cambalear à beira do KO químico voltou para a janela uma unha onde o verniz estalava:
– Alguma vez viu o sol lá fora, seu cabrão?
O psiquiatra gatafunhou Caralho + Cabrão = Grande Foda, rasgou a página e entregou-a à enfermeira:
– Percebe?, perguntou ele. Aprendi isto com a minha primeira mestra de lavores, diga‑se à puridade e de passagem que o melhor clitóris de Lisboa.
A mulher empertigou‑se de indignação respeitosa:
– O senhor doutor anda muito bem disposto mas eu tenho outros médicos para atender.
O homem lançou-lhe, num gesto largo, a bênção urbi et orbi que seguira uma vez pela televisão:
– Ide em paz, soletrou ele com sotaque italiano.
E não percais a minha mensagem papal sem a dar a ler aos bispos meus dilectos irmãos. Sursum corda e Deo gratias ou vice-versa.
Fechou cuidadosamente a porta atrás dela e voltou a sentar‑se à secretária. A Charlotte Brontë mediu‑o de pálpebra crítica:
– Ainda não decidi se você é um cabrão simpático ou antipático mas pelo sim pelo não cona da mãe.
Cona da mãe, meditou ele, que exclamação adequada. Moveu‑a dentro da boca com a língua como um caramelo, sentiu-lhe a cor e o gosto morno, recuou no tempo até a encontrar a lápis nos sanitários do liceu entre desenhos explicativos, convites e quadras e a recordação enjoada dos cigarros clandestinos comprados avulso na Papelaria Académica a uma deusa grega que varria o balcão com o excesso dos seios, demorando nele pupilas vazias de estátua. Uma senhora magrinha com ar subalterno apanhava malhas num canto sombrio anunciada por letreiro a escantilhão na montra (Malhas Com Perfeissão e Rapidês) tal como os cartazes pregados às grades do Jardim Zoológico avisam os nomes em latim dos animais. Cheirava persistentemente a lápis viarco e a humidade e as damas das redondezas com as compras da praça embrulhadas em papel de jornal vinham queixar‑se às mamas helénicas, em murmúrios desolados, das suas misérias conjugais povoadas de manicuras perversas e de francesas de cabaré que lhes seduziam os maridos ao dobrarem em quatro, ao ritmo afrodisíaco da Valsa da Meia‑Noite, a nudez experiente dos quadris.
O negro que se masturbava no pátio iniciou para edificação dos serventes contorções orgásticas desordenadas de mangueira à solta. L’arroseur arrosé. Incansável, a Charlotte Brontë voltou à carga:
– Oiça lá seu artolas, conhece a dona disto?
E depois de uma pausa destinada a deixar alastrar no médico o pânico escolar da ignorância assentou uma palmada proprietária na barriga:
– Sou eu.
Os olhos que desdenhavam o psiquiatra raiaram‑se de súbito de tracinhos métricos de duplo‑decímetro:
– Não sei se o despeço ou se o nomeio director: é consoante.
– É consoante?
– É consoante a opinião do meu marido domador de leões de bronze marquês de Pombal Sebastião de Melo. Vendemos bichos amestrados a estátuas, reformados barbudos de pedra para repuxos, soldados desconhecidos a domicílio.
O homem cessara de a ouvir: o corpo dele mantinha a curva obsequiosa de ponto de interrogação na aparência atento de terceiro oficial a despacho, a testa, para onde todos os acidentes geográficos do seu rosto convergiam como passantes para um epiléptico a lagartixar na calçada, amarrotava‑se de asséptico interesse profissional, a esferográfica aguardava a ordem estúpida de um diagnóstico definitivo, mas no palco dos miolos sucediam‑se as imagens vertiginosas e confusas em que o sono se prolonga manhã fora, combatido pelo sabor do dentífrico na língua e a falsa frescura publicitária da loção de barbear, sinais inequívocos de se esbracejar já, instintivamente, na realidade do quotidiano, sem espaço para a cambalhota de um capricho: os seus projectos imaginários de Zorro dissolviam‑se sempre, antes de começarem, no Pinóquio melancólico que o habitava, a exibir a hesitação do sorriso pintado sob a linha resignada da sua boca autêntica.
O porteiro que todos os dias o acordava a golpes teimosos de campainha afigurava‑se‑lhe um são bernardo de barril ao pescoço a salvá-lo in extremis do nevão de um pesadelo. E a água do chuveiro, ao descer‑lhe pelos ombros, levava‑lhe da pele o suor de angústia de uma desesperança tenaz.
Desde que se separara da mulher cinco meses antes que o médico morava sozinho num apartamento decorado de um colchão e de um despertador mudo imobilizado de nascença nas sete da tarde, malformação congénita do seu agrado por detestar os relógios em cujo interior de metal palpita a mola taquicárdica de um coraçãozinho ansioso. A varanda pulava directamente para o Atlântico por sobre as roletas do casino, em que se multiplicavam americanas idosas cansadas de fotografarem túmulos barrocos de reis, exibindo as sardas esqueléticas dos decotes numa arrepiante audácia de quakers renegadas. Estendido nos lençóis sem descer a persiana o psiquiatra sentia os pés tocarem o escuro do mar, diferente do escuro da terra pela inquietação ritmada que o agita. As fábricas do Barreiro introduziam no lilás da aurora o fumo musculoso das chaminés distantes. Gaivotas sem bússola esbarravam, estupefactas, com os pardais dos plátanos e as andorinhas de loiça das fachadas. Uma garrafa de aguardente iluminava a cozinha vazia da lâmpada votiva de uma felicidade de cirrose. De roupa espalhada no soalho o médico aprendia que a solidão possui o gosto azedo do álcool sem amigos, bebido pelo gargalo, encostado ao zinco do lava‑loiças. E acabava por concluir, ao repor a rolha com uma palmada, assemelhar‑se ao camelo recheando a sua bossa antes da travessia de uma longa paisagem de dunas, que teria preferido nunca conhecer.
Era em momentos desses, quando a vida se torna obsoleta e frágil como os bibelots que as tias‑avós distribuem por saletas impregnadas do odor misto de urina de gato e de xarope reconstituinte, e a partir dos quais refazem a minúscula monumentalidade do passado familiar à maneira de Cuvier criando pavorosos dinossauros de lascas insignificantes de falangetas, que a recordação das filhas lhe tornava à memória na insistência de um estribilho de que se não lograva desembaraçar, agarrado a ele como um adesivo ao dedo, e lhe produzia no ventre o tumulto intestinal de guinadas de tripas em que a saudade encontra o escape esquisito de uma mensagem de gases. As filhas e o remorso de se ter escapado uma noite, de maleta na mão, ao descer as escadas da casa que durante tanto tempo habitara, tomando consciência degrau a degrau de que abandonava muito mais do que uma mulher, duas crianças e uma complicada teia de sentimentos tempestuosos mas agradáveis, pacientemente segregados. O divórcio substitui na era de hoje o rito iniciático da primeira comunhão: a certeza de amanhecer no dia seguinte sem a cumplicidade das torradas do pequeno-almoço partilhado (para ti o miolo para mim a côdea) aterrorizou‑o
no vestíbulo. Os olhos desolados da mulher perseguiam‑no pelos degraus abaixo: afastavam‑se um do outro como se haviam aproximado, treze anos antes, num desses agostos de praia feitos de aspirações confusas e de beijos aflitos, no mesmo turbilhonante e ardente refluxo de maré. O corpo dela permanecia jovem e leve apesar dos partos, e o rosto mantinha intactos a pureza dos malares e o nariz perfeito de uma adolescência triunfal: junto dessa beleza esguia de Giacometti maquilhado achava‑se sempre desajeitado e tosco no seu invólucro que começava a amarelecer de um outono sem graça. Havia alturas em que lhe parecia injusto tocá‑la, como se o contacto dos seus dedos despertasse nela um sofrimento sem razão. E perdia‑se entre os seus joelhos, afogado de amor, a gaguejar as palavras de ternura de um dialecto inventado.»



António Lobo Antunes
Memória de Elefante
Dom Quixote, 1983

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