«Chegava sempre antes da sineta quando ia buscar a minha filha e
tirando a madrinha da aluna cega a cochichar cumprimentos em tom
de desculpa sem que eu a entendesse
(de tão exagerada na infelicidade dava vontade de gritar
– Afaste-se de mim não me aborreça)
não havia ninguém ao portão de modo que o recreio vazio excepto
uma árvore de que nunca soube o nome com as folhas demasiado pequenas
para o tronco e se calhar composta de várias árvores diferentes
(as mãos do meu pai minúsculas no fim de braços enormes, se calhar
composto de vários homens diferentes)
o escorrega a que faltavam tábuas com o letreiro Não Usar e a
porta e as janelas trancadas, derivado à impressão que ninguém lá dentro
compreendi a madrinha da aluna cega, disse-lhe sem palavras
– Não é exagerada perdão
e como deixei de ter filha cessei de respirar, não só a porta e as janelas
trancadas, compartimentos desertos, poeira, o edifício da escola
afinal abandonado e velho, a madrinha da aluna cega aproximou-se
carregando cheiros antigos e nisto que alívio a sineta
(– Pieguice minha és exagerada sim)
a sacudir as folhas da árvore
(ou os braços do meu pai)
os dedos cessaram de atormentar o fecho da mala e o coração diminuiu
nas costelas, os pulmões graças a Deus respiram, estou aqui,
quantas vezes ao acordar me surpreendia que os móveis fossem os
mesmos da véspera e recebia-os com desconfiança, não acreditava neles,
por ter dormido era outra e no entanto os móveis obrigavam-me
às recordações de um corpo a que não queria voltar, que desilusão esta
camilha, esta cadeira, eu, cochichar à madrinha da aluna cega o que
me cochichava a mim, pedir desculpa sem que me liguem e a porta e
as janelas abertas, a professora nas escadas, as primeiras crianças, pais
(não o meu pai)
ao portão comigo, não o meu pai que não lhe sobrava tempo
– Não te mexas que me dás nervos
a conversar com o empregado ou a falar ao telefone na secretária
do jornal cheia de cartas, retratos, ganharia muito dinheiro você pai
(não acredito)
não finja que não alcança o que lhe digo
– Pões-me nervoso tu
morreu há uma data de anos, passa da meia-noite
(– Tardíssimo filha)
e não finja que não alcança o que lhe digo, meia-noite nesta vivendinha
do Pragal, daqui a pouco sons húmidos de foca no primeiro andar
e a senhora
– Pões-me nervosa tu
era o meu pai que eu punha nervoso apesar de calada
(– Ainda aí estás que mania)
a senhora o meu nome
– Ana Emília
a chapinhar no colchão e os rebentos do arbusto de groselha ao
comprido do muro, a sineta da escola acelerava o tempo, as folhas da
árvore a pularem sílabas muito depressa
– Ana Emília
na porta a aluna cega, a minha filha, as gémeas e a ruiva gorda que
era preciso empurrar na ginástica, a empregada da limpeza destrancava
as janelas e nem compartimentos desertos nem poeira, nenhum defunto
todo direito de gravata branca a espiar-me, somente mapas, carteiras,
restos de números a giz, a testa do meu pai um lençol de cama por
fazer
– Vens pedir-me dinheiro para a tua mãe é isso?
remexia na algibeira e escutavam-se as chaves, desistia, o jornal
dois ou três cubículos escuros
(uma garrafa a um canto e aí sim, julgo que defuntos de gravata
branca)
isto numa travessa perto de um convento, mulheres de cabelo pintado
vestidas de domingo nas suas ilhas de perfume espanhol, a minha
filha apertava a cabeça na minha barriga, fazia-a girar uma ou duas
voltas a segurar-lhe os ombros com medo que se soltasse de mim e se
aleijasse numa esquina, meia-noite no Pragal
(a minha mãe antes de falecer
– Não necessito de ti
incapaz de fechar a boca, a tremer os joelhos)
na Austrália e no Japão manhã e todas as mães vivas, os trastes onde
o candeeiro não chegava invisíveis ou seja nódoas mais densas, adivinhava
o armário em que durante a chuva as loiças tilintavam, se a
aluna cega estivesse comigo havia de alarmar-se a medir o ar com as
orelhas
– O que foi?
e corrido um instante a senhora
– Ana Emília
a perguntar as horas, o que os doentes se inquietam com as horas,
como os intrigam que estranho
– Que horas são?
isto de segundo a segundo, duvidam, insistem
– De certeza?
que raio significam as horas para eles, continuará a existir a escola,
a árvore de que nunca se soube o nome e a madrinha a vigiar a sineta
nos seus cochichos de desculpa
– Continuo ao seu lado repare
subindo do Pragal para Almada principiava a suspeitar-se o Tejo
nos intervalos dos prédios, estes comércios de pobres, estas pessoas, se
achasse a minha mãe na rua aposto que se me atravessava à frente
– O teu pai deu-te o dinheiro ao menos?
nunca vi uma criatura cortar com tal fúria de dentes o que sobejava
de coser um botão e aí estava a Ana Emília a pensar nisto ao entregar
o comprimido à senhora que deslizava para o interior do sono a
teimar
– Gardénia
(uma prima, ela mesma?)
o comprimido obrigava-a a uma zona mais funda na qual um cavalheiro
de idade designava o globo terrestre com a unha suja
– O mundo é grande menina
e regressava ao caixão para estender-se nele, o arbusto de groselha
iluminava o muro e anulava-se em seguida, ao iluminar o muro um tijolo
despontava do reboco e adivinhava-se o postigo da arrecadação
em que uma panela eléctrica avariada e cebolas que grelaram, a minha
filha de volta a casa comigo, dois passos meus, três passos dela, um cachorro
a farejar memórias e a minha filha a puxar-me a saia
– O bicho vai morder-nos mãe
até as memórias
(de uma tigela de carne, da dona a assobiar-lhe, do cesto onde enrolar-
se)
conduzirem o cachorro no sentido do parque em que talvez a tigela
ou a dona
(– Pões-me nervosa tu)
o animassem ao passo que no meu caso, quando chego do Pragal a
Lisboa com o muro do arbusto de groselha a diluir-se em mim, nenhuma
unha suja a apontar-me nada, o globo terrestre empenado no
seu eixo e o mundo pensando bem não grande coisa, acanhado, pare
des e paredes, o biombo que me impedia o quarto, o mundo uma esfera
encolhida a desbotar as cores, do reposteiro, do abajur, das
almofadas do sofá e a boneca da minha filha na mesinha, apertei-lhe a
cabeça na barriga e tentei uma volta com medo que se soltasse de mim
e se aleijasse, os defuntos muito direitos de gravata branca
– Cuidado
e pode ser que chovesse porque um tilintar de loiças que o armário
fechado atenuava, o meu marido a impedir-me de girar agarrada à boneca
– O que vão pensar de nós já viste?
as flores do arbusto de groselha no meu cabelo e na gola a impedirem-
me a aluna cega, as gémeas e a ruiva gorda que falhava os degraus,
eu a afastar o meu marido
– Pões-me nervosa tu
com a macieira do quintal na ideia, maçãzinhas insignificantes,
verdes e o banco tombado, recordo-me dos besouros junto ao poço
apesar de o taparmos com uma chapa, ao recordar os besouros sons
húmidos de foca e a senhora
– Ana Emília
o casaquito de malha de botões trocados, uma espécie de sorriso a
justificar-se
– Não dizia que não a um chazinho
de lucialima, de tília, das ervas que cercavam a macieira e não cortávamos
nunca, apetece-lhe um chazinho das ervas junto às quais a
minha filha se enforcou aos quinze anos senhora, apetece-lhe assustar-
-se com a boneca no chão, a cara contra barriga nenhuma que não
deixava de girar, uma altura não à meia-noite como hoje
(ignoro como não tenho vergonha de dizer isto)
mais cedo, encontrei o meu marido a experimentar uma saia minha
e os meus brincos, igualzinho às mulheres vestidas de domingo na
travessa, o meu pai da secretária
– Ainda aí estás que mania
a conversar com o empregado ou a tapar o bocal, um jornal de
anúncios de casamento que os clientes mandavam pelo correio e o
meu pai a ler as cartas ao empregado
– Que tontos
a minha mãe na paragem do autocarro cem metros abaixo parecendo
tão acabada ao trotar para mim a misturar sílabas no cansaço
– Deu-te o dinheiro ao menos?
enquanto eu pensava
– Nem um nem outro compreende quem sou desconhecem-me
se o automóvel do homem que prometeu visitar-me contornasse a
praceta até lhe agradecia as mentiras, o meu marido viu-me no espelho
e tirou um dos brincos convencido que tirara tudo, a saia, o camiseiro,
o colar, os frutos da macieira já não verdes, grandes, um primo nosso
desatou a corda que a minha filha roubara do estendal e a indignação
dele gritava, auxiliei a senhora com a chávena e na segunda tentativa
de engolir um suspiro
– Não posso mais
no mesmo cochicho de desculpas que a madrinha da aluna cega a
devolver-me o portão da escola e as janelas trancadas, eu continuando
a acreditar diante do recreio vazio e aposto que não escola hoje em dia,
uma repartição, escritórios, a árvore e o escorrega um vazadouro onde
se deixam restos e metade de uma persiana a bater, a bater, ao fim do
mês na sala, se é que pode chamar-se sala àquilo
(um Buda numa réplica de altar)
a sobrinha da senhora fazia as contas ao tempo, a minha mãe embora
falecida a roubar-me o envelope verificando-lhe a espessura
– Deu-te o dinheiro ao menos?
a aferrolhá-lo à chave e a sumir a chave no avental maldizendo o
meu pai enquanto interrogava sombras
– Expliquem-me como pude acreditar no camelo?
a família seguia-a das molduras e a imagem dela em nova já amarga,
já séria, nunca a visito no cemitério conforme nunca visito a minha
filha, um lugar a ferver de ossos que procuram exprimir-se, a sineta da
capela mais grave que a da escola, nomes que se decifram mal e a nin
guém pertencem, a ilusão que uma criança um dia destes no portão e
a gente a rodopiar contentes, o meu marido estendeu-me o brinco na
palma, além da boneca o aquário sem peixes nem água com um alicate
no bojo já não na entrada nem no quarto, na despensa, sinto-o brilhar
no meio das conservas e talvez a surpresa de um peixe, o olho fixo que
me estuda, a cauda sacode-se e que é dele, na época da minha filha
plantas artificiais e um frasquito de comida que sabia a giz, a minha
filha
– Sabe a giz
a quantidade de episódios que gostava de deitar fora
– Aguentem-me esta tralha um bocadinho tomem
intimidades que até hoje ocultei, pedir ao homem que prometeu
visitar-me e não visita
– Escuta
sentar-me à sua frente demasiado cheia de palavras, começar baralhando
tudo, a trocar frases, a enganar-me e ele quase comovido, feliz,
inventar que o meu pai comigo ao colo, o jornal importante numa rua
importante, não uma travessa de comerciozitos e mulheres vestidas de
domingo nas suas ilhas de perfume espanhol, o meu pai um fato como
deve ser em vez do casaco curtíssimo, empregados que o respeitavam,
não um, vários, uma unha suja
(não dele)
a apontar o globo terrestre
– O mundo é grande menina
na crença que eu imaginasse regiões infinitas numa porção de lata
amolgada no Pacífico e a povoasse ao meu gosto, pretos com flechas,
naufrágios, arranjar um marido, uma filha e um quintal com uma macieira,
que tonta, como se um galho de macieira aguentasse sem quebrar
uma rapariga de quinze anos, um arbusto de groselha ao
comprido do muro no Pragal e uma senhora inválida no primeiro andar,
a quantidade de episódios que apesar de tudo me enterneciam e
gostaria que alguém, prestando-me atenção, soubesse, a noite e os pavores
que o silêncio traz consigo menos difícil para mim, em miúda
morei perto do cemitério e vi as fosforescências que se erguiam das lápides,
presumo que os defuntos embaraçados em pedregulhos e raízes
desejosos de ressuscitarem, os que não cheguei a conhecer inspeccionando
a casa a interrogarem-me acerca da utilidade dos objectos, a
quantidade de episódios que gostava de dizer a alguém, darem-me um
bocadinho de consideração, de simpatia e no fundo de mim uma sineta
de escola que não pára, não pára sem que criatura alguma lhe toque
salvo o vento, aproximo-me e o badalo sozinho, a minha avó a enterrar
as crias da gata que chiavam gemidos encavalitando-se, rastejando,
protestando, começava por prender a gata na copa
(e o bicho furioso contra a porta)
a seguir juntava as crias num cabaz
(tudo isto calada)
suspendendo-as pelo pescoço, o rabo, uma pata, abria a cova e entornava
o cabaz enquanto o desespero da gata derrubava boiões, a minha
mãe
(– Deu-te o dinheiro ao menos?)
embuçava-se no avental com as sobrancelhas de garota aflita
– Não me habituo a isto
numa agitação de lágrimas sem lágrimas, o meu avô para a minha
mãe a procurar fosse o que fosse nos bolsos sem procurar nada ou a
descobrir uma moeda, a examiná-la um instante e a lançá-la pela janela
ele que não deitava nem um prego torto fora
– Não se pode contrariar a tua mãe desculpa
a minha mãe
– Pai
e o meu avô a desviar-se de nós com o osso da garganta para baixo
e para cima enquanto a minha avó ia tapando as crias, alisava a terra
com as botas e os gemidos cessavam, a gata por fim resignada na copa,
à espera, horas no relógio da consola, quatro ou cinco, com o mecanismo
a obrigá-las a despenharem-se que bem se percebia o esforço das
molas conduzindo-as até à bordinha e deixando-as cair, no cair da última
a minha avó esfregava as solas no capacho a olhar para a gente
num desafio ou assim
(e se calhar procurando moedas nos bolsos por trás do desafio)
à medida que a gata farejava a terra alisada, sumia-se nos feijoeiros
e regressava dois dias depois a dobrar-se-lhe de desgosto nas pernas, se
tivesse herdado o relógio que venderam com os tarecos ao venderem a
casa confirmava que meia-noite, um relógio de medalhão de porcelana
representando um coche, dois cavalos
(um castanho e um pardo, ou seja um castanho e um branco que
a vida empardeceu)
e um sujeito de chicote a segurar nas rédeas, no interior pesos e
volantes fabricando as horas, arredondando-as, trazendo para cima esses
pingos de som, quem terá comprado a quinta, quem sofrerá como
eu dantes os gemidos das crias encavalitando-se, rastejando, protestando,
quem se interroga a inclinar a orelha
– O que é isto?
a gata ficou a inspeccionar a cova agachada nas dálias, dizer também
da gata antes que o inverno comece e com ele choupos negros, os
cachos do arbusto de groselha no chão, sons húmidos de foca no primeiro
andar e a senhora que me perdeu o nome
– Você
tacteando ruínas do passado, um grupo de parentes a suspender o
jogo de cartas
– Gardénia
e um barquinho a remos que se detinha em junquilhos e lodo,
tentou segurá-lo e escapou-se, chamou-o e não obedeceu, apercebeu-se
que o barquinho não vazio, uma miúda de vestido lilás a sorrir-lhe
– Nunca mais nos vemos
e era ela mesma a acenar-se adeus, compassos de música e um padre
a trinchar um frango à cabeceira da mesa, a senhora a dirigir-se à
miúda que cessara de sorrir-lhe, ocupada a colocar flores no chapéu
– Você
enquanto a filha me estendia o ordenado
– Já nem os nomes distingue
consoante não distingue o tilintar das loiças no armário e as mil
crepitações dos barrotes, os insectos que apesar da alfazema
(sinto o cheiro à distância, rocas de alfazema que uns lacinhos
unem)
lhe roem as fronhas e as toalhas da arca, as pilhas de revistas
(La Femme Idéale, Maravilhas de Renda, O Bom Cozinheiro)
a cantoneira de relevos trabalhados e o homem que prometeu visitar-
me em Évora com a mulher a receber da boca dele confidências
que me pertencem, são minhas, segredos que me comovem e até hoje
calei, mistérios provavelmente idênticos aos de toda a gente, banalidades
de pacotilha, falsidades, a minha filha com quinze anos
(creio ter afirmado quinze anos)
a pegar na boneca ela que não lhe ligava fazia séculos dado que as
paixões vai-se a ver e passam
– Chame-me quando o jantar estiver pronto que vou lá fora ao
quintal
de modo que nem sequer a olhei a pensar no mar da Póvoa de
Varzim que tantas vezes me regressa à ideia, o mar, a praia e o cheiro
das ondas, o nevoeiro da manhã que quase me impede de assistir à minha
avó a enterrar as crias e a enchente que lhes abafa o terror, sempre
que um assunto me preocupa aí estão o vento e a espuma a salvarem-
-me, o vento nas frinchas dos caixilhos e apesar da minha mãe se enervar
com a areia no soalho obrigada vento, nem calculas o que te devo,
a nossa casa não na Póvoa de Varzim, no interior a que os gritos das
traineiras não chegavam a não ser em abril no caso de tudo em silêncio,
a bomba do poço, os tentilhões no pomar, o meu avô desdobrava
redes para os pássaros e embora estrangulados eu insistia em libertá-
-los, batia palmas diante de asas mortas
– Desapareçam
a impacientar-me
– Sumam-se-me da vista num ai
e a procurar fosse o que fosse nos bolsos sem procurar nada, não a
examinar a moeda nem a lançá-la fora porque não tinha um prego
torto para amostra, na hipótese de um rebuçado dava-o aos tentilhões
– Se prometerem que se vão embora ofereço-o
havia alturas em que o mar tão sereno em agosto com uma paz de
nuvens em cima, basta o mar em agosto e a recordação do Casino e
emociono-me logo, as lágrimas que eu choraria se lá estivesse amigos,
ganas de beijar as pedras ao reencontrá-las, senti-las na palma, aproximá-
las da bochecha, chamei a minha filha em Lisboa enquanto as ondas
iam e vinham na Póvoa, provavelmente uma única onda sem
cessar repetida, o meu marido no espelho com o brinco suspenso, o
queixo bambo do gado de focinho inerte mas de membros rigídos, depois
de se lhes martelar um espigão na nuca ei-los a tombarem de banda,
a senhora acotovelou o padre que trinchava o frango à cabeceira da
mesa a pronunciar o meu nome
– Ana Emília
borboletas no verão fosse na Póvoa de Varzim fosse no Entroncamento
onde também morei
(se tiver oportunidade escrevo acerca dos comboios, oito anos da
minha vida sob o signo dos comboios, sou da época das locomotivas a
carvão, vozes de almas do Purgatório sofrendo na caldeira que imploravam
socorro)
fosse na Póvoa de Varzim fosse no Entroncamento fosse aqui em
Lisboa borboletas, uma azul e duas brancas quando chamei a minha
filha para jantar
(continuarão a existir redes e tentilhões?)
ou duas azuis e uma branca ou três azuis ou três brancas tanto faz,
o importante é que borboletas, porventura mais que três, meia dúzia,
uma dúzia, quarenta, sessenta, centenas de borboletas em torno da
macieira, pronto, se alguém
(aquele a quem gostava de dizer uma porção de coisas, intimidades
que por pudor escondi)
se o homem que prometeu visitar-me com a mulher em Évora a
dar-lhe uma atenção que devia ser minha, é minha, me pertence, quiser
subtrair algumas que subtraia
(pode ser que na província redes e tentilhões e um velho a mascará-
las de caniços)
por conseguinte a borboleta azul e as duas brancas, os canteiros
que me esqueci de arranjar, a minha filha
já lá vamos à minha filha, antes da minha filha e pela última vez
repito que o mar da Póvoa de Varzim tão sereno em agosto com uma
paz de nuvens em cima e por falar na minha filha uma paz de nuvens
em cima também, estiradas ou redondas
(uma redonda no horizonte)
basta o mar em agosto e a recordação do Casino para me enternecer,
as lágrimas que eu choraria não de tristeza, contente, se lá estivesse
amigos, pensei que a minha filha entretida por exemplo com as crias
da gata sob a terra encavalitando-se, rastejando, protestando e ela a tapar
os ouvidos conforme tenho vontade de tapá-los ao recordar a sineta
ou o murmúrio da árvore composta de várias árvores diferentes, de
folhas demasiado pequenas para o tronco
(as mãos do meu pai no fim dos braços enormes, gestozinhos impelidos
pela aragem das seis
– Pões-me nervoso tu)
a minha filha enquanto as ondas iam e vinham, aposto que uma
única onda sem cessar repetida, densa, grande, a areia quase brilhante
(brilhante, a areia brilhante)
e sem marcas de pés ao retirar-se, uma linha de alcatrão por junto,
sons húmidos de foca no primeiro andar
– Ana Emília
um casaquito de malha de botões trocados
– Não dizia que não a um chazinho
e uma espécie de sorriso a desculpar-se, chá de lucialima, de tília,
das ervas que cercavam a macieira e não aparávamos nunca, quer um
chazinho das ervas junto às quais a minha filha se matou aos quinze
anos minha senhora, ao descer os degraus a boneca no chão, o banco,
de início não vi a corda nem me passou pela cabeça que uma corda,
para quê uma corda, vi a borboleta, a boneca no chão e o banco, a boneca
por sinal não deitada, sentada, de braços afastados e cabelo preso
na fita usando o vestidinho que lhe fiz, a boneca a quem eu
– Desaparece
capaz de lhe oferecer um rebuçado para que desaparecesse num ai
antes do meu avô pegar na caçarola e na banha, vitorioso no umbral
– Um molho de passarinhos fritos como deve ser
vi as borboletas, centenas de borboletas e não somente brancas e
azuis, várias cores, centenas de asas contra a macieira, não ondas, asas,
não pedras que me apetecesse beijar ao reencontrá-las, senti-las na palma,
aproximá-las da bochecha, asas, à medida que avançava asas, que
chamava a minha filha asas, não uma corda grossa, aliás não tínhamos
cordas, tínhamos guitas e atilhos de embrulho na gaveta da tintura de
iodo, da turquês e das chaves de móveis que não possuíamos já numa
caixita de alumínio porque nunca se sabe, a caixita proclamava Graxa
Parisiense com uma botina a cintilar no rótulo, podia continuar horas
sem fim a descrever a caixita na mira de adiar dizer o que é inevitável
que diga e a minha boca recusa, a minha cabeça recusa, toda eu
recuso, um resto de pasta negra grudava-se à lata
– Pões-me nervosa tu
destroços de raciocínios, lixo de dias, uma lamúria desiludida
– Gardénia
zonas submersas nas quais domingos, um cavalheiro de idade a designar
o globo terrestre
(meia-noite)
com a unha suja
– O mundo é grande menina
(afirmei que meia-noite)
o arbusto de groselha iluminado no muro e a apagar-se em seguida,
no arbusto não uma corda, o fio do estendal que nem se percebe
como não quebrou com o impulso porque a minha filha desviou o
banco com os pés, um dos pés pelo menos, deve ter principiado por
colocar a boneca no chão
– Quero mostrar-te uma coisa repara
a amarrar a corda no galho, vou regressar à Póvoa de Varzim, às
borboletas, à aluna cega estudando o ar sem entender a sacudir a madrinha
– O que foi?
e o que foi minha querida é que a porta e as janelas trancadas,
compartimentos desertos, poeira, o edifício da escola afinal abandonado
e velho, o que foi minha querida é uma borboleta branca e duas
azuis ou uma borboleta azul e duas brancas tanto faz, o que me ralaram
as borboletas nessa altura, o que me ralam agora, ainda se fosse o
mar da Póvoa, o Casino, o que foi era a boneca parecia que divertida,
eu à medida que compreendia com medo da rede dos tentilhões
– Põem-me nervosa vocês
e dos canteiros que me esqueci de arranjar, eu a procurar fosse o
que fosse nos bolsos sem procurar nada, o osso da garganta para baixo
e para cima no momento em que uma unha suja
– O mundo é grande menina
designava a minha filha a girar abraçando-me a cintura e uma volta,
duas voltas com receio que se desprendesse, não tivesse forças para
continuar a dançar e uma esquina a aleijasse, centenas de asas entre a
macieira e eu, não ondas, asas, receio que uma das pernas tocasse na
boneca, no banco, o brinco a diminuir na mão do meu marido, a imagem
do espelho a afastar-se, se o homem que prometeu vir e não veio
me ajudasse
– Ajuda-me
me pudesse ajudar, me desse a ilusão de poder ajudar, responder-
-lhe
– Não preciso de nada
sem conseguir fechar a boca e de joelhos a tremerem à medida que
iam passando por mim o tilintar das loiças com a chuva e a arrecadação
onde as cebolas grelaram, eu indiferente ao chá
– Não preciso de nada
e aí está a Ana Emília sozinha dado que não precisa de nada, para
além de não precisar de nada não espera nada, não deseja nada nem
sequer uma última onda, com a última onda um friso de alcatrão na
praia que ali permanecerá para sempre, observava a filha, observava a
boneca, observava a filha de novo a estranhar-lhe o silêncio, olhos não
aumentados, distraídos
(a imaginarem o quê?)
os frutos da macieira pontinhos verdes, nos últimos anos nem chegaram
a maçãs, apodreciam minúsculos, a boneca que não tinha que
dizer-me, como a senhora, como a Ana Emília para o que prometeu
vir e não veio
– Não preciso de nada
dado ser óbvio que não precisava de nada, satisfazia-se em girar
não tão rápido quanto no portão da escola, devagarinho, sem peso,
aproximei-me da minha filha a enxotar as borboletas
(dúzias de borboletas)
que surgiam da erva para subirem, até ao vértice das copas, na direcção
da tal única onda sem cessar repetida que me acompanha desde
o meu nascimento, aproximei-me não da minha filha, da boneca e a
sineta da escola calou-se na memória, lá estava o pátio, o escorrega
(intactos, nítidos)
a madrinha da aluna cega a cochichar cumprimentos em tom de
desculpa, vontade de gritar-lhe consoante a boneca me gritou
– Afaste-se de mim não me aborreça
e tirando a madrinha da aluna cega ninguém, não havia a macieira,
não havia a minha filha de modo que eu diante de um ramo sem
nada, a minha filha em casa à mesa de jantar começando a comer não
por falta de educação
(– Espero um bocadinho pela minha mãe cinco minutos vá lá)
por fome, a empurrar para a borda com a delicadeza do garfo
(no que respeita a delicadeza não é por ser minha filha mas sempre
teve modos distintos)
os legumes de que não gostava
– Como nunca mais vinha fui começando a comer
por consequência uma boneca e é tudo, não um ser vivo e muito
menos alguém que eu conheça e conheço tanta gente, muito menos a
minha filha, a minha filha a começar a comer, não merece a pena apoquentar-
me, esconder-me no avental onde as sobrancelhas de uma garota
aflita numa agitação de lágrimas sem lágrimas, não merece a pena
encavalitar-me, rastejar, protestar, tentar fugir da cova dado que não
existe cova, ninguém me enterra, ninguém me quer matar, espero um
bocadinho
(cinco minutos vá lá)
que me toquem à porta e se não me tocarem à porta acerto o fecho
de segurança encalhado no ressalto inferior, no de cima não há
problema mas no inferior empena, corrijo-o com o martelo, guardo os
cálices no aparador
(outrora seis e cinco hoje em dia, tudo na vida tem a sua duração
até os cálices)
e deito-me sem pensar que um automóvel na rua, passos na escada,
um indicador cauteloso, quase tão delicado como o da minha
filha, a raspar a madeira
– Sou eu
e que juro não ouvir, não oiço, se por acaso ouvir atribuo-o ao sono
no qual ecos, sinais de conversas, ameaças, o galho da macieira a
sussurrar mistérios de baú no interior da alma visto que é nas trevas e
quando menos se espera que os baús se lamentam, portanto e até amanhã
unicamente o mar da Póvoa de Varzim tão sereno em agosto,
uma paz de nuvens em cima e eu acocorada a olhá-lo, dou com as
borboletas
(não importa a cor nem o número, escolham a cor e o número
que quiserem, divirtam-se)
as ervas que um dia destes, para a semana por exemplo, auxiliada
pela tesoura ou a foice ou o ancinho hei-de arranjar prometo, com um
pouco de atenção darei pela senhora igualmente
– Ana Emília
ou seja primeiro espasmos húmidos de foca e a seguir
– Ana Emília
não no Pragal, no meu sono ou na Póvoa de Varzim em agosto,
no que respeita ao horizonte tornava-se difícil distinguir o céu do mar,
não um risco como de costume, o risco ausente de forma que impossível
saber o sítio em que o céu se dobrava e começava a onda, em que a
espuma a franzir-se, percebia-se a boneca, não a minha filha, na ponta
da corda ou do fio de estendal que ia girando devagar, não de braços
afastados, pegados ao corpo numa atitude de entrega, uma boneca de
que as borboletas
(dúzias de borboletas)
de que dúzias de borboletas me impediam de notar as feições, notar
a minha filha em casa a começar a comer empurrando para a borda
do prato com a delicadeza do garfo
(não é por ser minha filha mas sempre teve modos distintos)
os legumes de que não gostava, a minha filha a começar a comer,
acho que fui clara e peço que não me contrariem neste ponto, a minha
filha a começar a comer desculpando-se
– Como nunca mais vinha fui começando a comer
a minha filha a começar a comer, a minha filha viva e de uma vez
por todas se não me levam a mal
(espero que não me levem a mal)
não se fala mais nisso.»



António Lobo Antunes
Ontem Não Te Vi Em Babilónia
Dom Quixote, 2006

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