Duas cartas

1

Vejo-te a suar à máquina de escrever
Fabricando versos abusáveis
Sobre a morte por asfixia na rede
Das leis necessárias. Os pedreiros, escreves,
Foram usados como argamassa já
Na construção da Grande Muralha, e continuam
A construir-se grandes muralhas. Nada de novo
Sob o Sol, escreves tu. Não escreves nada de novo.
Aprendeste a interrogar as respostas.
O aplauso que te ensurdece não é uma delas?
Os efeitos rápidos não são os novos.
Um encontro à noite depois da nossa conversa:
Dois republicanos a caminho da cama
Discutem sobre a democracia
PoisissoéaFormamasondeéqueficaoConteúdo?
Contam os anos pelos aumentos de ordenado
Os meses pela saída do Magazine
Cada um é um sábio, modelo Keuner
Não há pensamento que não passe pelo estômago
Nem medo das poças de água como em Büchner
Pequenas cabeças, mas têm razão
Quando, lendo os teus versos, dizem:
Que tem, afinal, este Alguém para nos dizer?
Será que não entendeu a importância da reforma agrária?

2

Que pode uma rima contra as cabeças ocas?
Perguntas tu. Nada, dizem alguns. E outros: pouco.
Shakespeare escreveu o Hamlet, uma tragédia,
A história de um homem que deitou fora o seu saber
Curvando-se a um costume estúpido.
Não conseguiu acabar com a estupidez.
Não quereria escrever mais que um mandato de captura?
Hamlet o dinamarquês príncipe e comida de vermes tropeçando
De buraco em buraco até ao buraco final desanimado
Atrás de si o fantasma que o gerou
Verde como a carne de Ofélia depois de dar à luz
O horizonte a armadura dura mais
E pouco antes de o galo cantar pela terceira vez um louco
Rasga o gibão de guizos do filósofo
E um mastim corpulento enfia a couraça.
Ou então Bertolt Brecht o incompreendido
Com grande persistência e alguma esperança
Também ele mais não podia fazer senão esticar o arco
Quantas cabeças ocas lhe sobreviveram?
Durante toda a vida procurou uma maneira
De não matar o outro. Perto do fim
Tinha-a descortinado de longe
Meio escondida por uma névoa de sangue.
Becher suou muito a construir sonetos
Para que se encontrassem as águas do Volga e do Neckar.
Terão os camponeses do Jura lido
Os Sonetos quando o comunismo
Lhes tirar a terra de cima dos ombros?
A nós resta-nos o espaço que vai do Nada ao Pouco.



Heiner Müller
O anjo do desespero
Relógio D´Água, 1997
tradução de João Barrento

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