«Tenho uma criança perdida em todos os lugares»
Herberto Helder
Herberto Helder
i.
não vim ao mundo senão para morrer
uma criança nasce nas vizinhanças da morte
absoluta e cadáver
os pulmões sufocando invisíveis
cadáver naufragando luz
e as sombras corroendo o universo inteiro
a tarde doía Deus
quando o ferro me cortou do paraíso
áspide e grego em sol contrário
deitaram-me sem estrelas num caixão
independente de sílabas gritadas
(falava o anterior e era um grito
e porque era um grito me chorava)
deram-me um nome que nunca regressei
pedras silábicas no mundo
os olhos ardiam por se ver o nada
ii.
absoluta e cadáver a criança caía
doíam Deus as tardes
quando trepava o visível de mãos cortando
as árvores barcos de sentido
se era para morrer que valia um dia
porque puseram desertos ao alcance das mãos
e colaram asas estátuas de desejo
atravessava o nada e ninguém me via
iii.
e depois enganaram-me o amor
e ninguém me disse que o amor
era o sono da morte
e eu subia corpos como anunciações
sangue e sangue com boca
colada ao invisível todo e
a morte bebia os astros e os caminhos
interestelares a distância dos braços
a terra a escavar a morte
enquanto se rasgam dois corpos
Deus doía tarde
quando absoluta uma criança morria
iv.
deram-me um espelho onde me queimei
integral e semente
atravessava os vultos corredores do tempo
mas só a sede me vivia
a criança que corre pelo outono
só deseja a morte
gosta de areia é a memória
vai cegando de coisas irreais
famílias de divisas actos de passagem
um rosto devorado pelas invasões
com a sede a diluir-lhe o corpo
cadáver absoluto nas vizinhanças da
dor que Deus doía
v.
para uma criança morrer
absoluta e cadáver
dão-lhe um inferno para crescer
chamam destino ao que a morte cria
e noite à verdade dos dias
tiram retratos que a morte desfoca
e permitem que se passe entre os mortos
como se aqui fosse o lugar
sei apenas hoje e eu
que a dor de Deus tarde
é o único chegar
Pedro Sena- Lino
Deste lado da morte ninguém responde
Quasi Edições, 2008
* [xácara do nunca nascido] foi escrito em 8 de Novembro de 2004, à partida da Natércia, e é dedicado à Teresa e ao José.
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