Enfrentando a música

Azul. E nesse azul uma sensação
de verde, as cinzentas calotas de nuvens
amparadas contra o ar, como se
na ideia da chuva
o olhar
pudesse domar a fala
de um dado momento

na terra. Chamem-lhe o céu. E assim
descrever
o que quer
que vemos, como se nada mais fosse
que a ideia
de algo que tínhamos perdido
cá dentro. Podemos começar, pois,
a recordar

a terra dura, as estrelas
dardejantes de sílex, os undíferos
carvalhos, soltos
pelo resfolegar do vento, e assim até
à mais ínfima semente, descobrindo
o que sobre nós cresce, como se
por causa deste azul pudesse haver
este verde

que alastra, nisto inumerável
e milagroso, o mais silente
momento do verão. Sementes
falam deste ciclo, definem
o lugar onde o ar e a terra irrompem
nesta profusão de acaso, as aleatórias

forças da nossa falta de conhecimento
acerca daquilo
que vemos, e meramente falar disso
é ver
como as palavras nos falham, como nada sai bem
no dizer disso, nem sequer estas palavras
que sou levado a dizer
em nome deste azul
e deste verde
que se dissipam
no ar do verão.


Impossível
Continuar a ouvi-lo por mais tempo. A língua
para sempre nos aparta
de onde estamos, e em parte alguma
podemos repousar
nas coisas que nos são dadas
a ver, pois cada palavra
é outra parte qualquer, algo que se move
mais depressa que o olhar, mesmo
enquanto se desloca este pardal,
voluteando rumo ao ar
onde não tem lar algum. Não acredito, então,
em nada

do que te possam dar estas palavras,
e contudo ainda posso senti-las
a falar através de mim, como seja
isto somente
o que desejo, este azul
e este verde, e dizer
como este azul
se tornou para mim na essência
deste verde, e mais do que a pura
visão disso, quero que sintas
esta palavra
que o dia inteiro viveu
dentro de mim, este
desejo de nada

que não o dia em si mesmo, e o modo como cresceu
dentro dos meus olhos, mais forte
do que a palavra de que é feito,
como se jamais
outra palavra

me pudesse amparar
sem se quebrar.



Paul Auster
Poemas Escolhidos
Quasi Edições, 2002
Tradução de Rui Lage

1 comentário:

C-ASA disse...

Azul é o nome que se dá a um rapaz sentado no passeio. Tem olhos castanhos e nenhum aparente apego a nada.
Um rapaz azul sem céu, nem mar. Um rapaz que este poema lembra, principalmente no azul, muito menos no verde.

- como te chamas?
- Azul.

eu fui embora uma hora depois,sentei-me com ele. Ele esteve sempre calado. fingi ler o jornal, perguntei as horas a um homem que por ali passava, quatro despropositados sorrisos paar o lado.Nada o Azul não se mexia, o Azulnão se metia.
Mas fiquei ao lado do Azul e dito assim parece um poema bucólico e decerto chato.

"impossível continuar a ouvi-lo por mais tempo. a língua para sempre nos aparta de onde estamos"...

e este poema teve o nome do Azul, porque os poemas vestem diferentes peles, cabem em diferentes sapatos.

O rapaz azul cabe no poema do paul auster, que te passou depois nos olhos, depois nos nossos e meus...

tudo passa, diz o pimenta e esse poema também vale a pena ser encontrado...