Passou por nós este tempo todo

Passou por nós este tempo todo, a coisa
ridícula do estão-a-tocar-a-nossa-canção
desaba sobre nós como um trovão.
Passa-nos uma coisa pela cabeça e
lá vamos nós de cabeça meter-nos
na boca do lobo, atirar ao próprio pé,
meter um golo na própria baliza.

Mesmo ao ler duas linhas muito belas,
com a sombra do candeeiro a dar-lhe em cheio,
a breve palavra dos seus lábios era outra.
A simples música dos seus lábios era outra.
Essas linhas já não tinham, por assim dizer,
lógica nenhuma. E eu, tonto, lá ia.

A coisa é de tal forma que ainda hoje
lá vou, a esse rodeio de mistérios repetidos,
força magnética e fatal, onde foste buscar
tanto sangue para meter nas veias?
Que, grossas, despontam sobre a ira
das mãos assanhadas e assim te atraem.

Uma dança parada de costas duras, fasquia
dobrável com truque de mão, alguma coisa
me prende aqui, quem sabe se nesta casa
não descobri, sem querer, o eixo da terra,
o equador de uma alma relativamente pobre.



Helder Moura Pereira
Segredos do Reino Animal
Assírio & Alvim, 2007

1 comentário:

mar disse...

" Escrevo, sem uma voz a orientar
a vida, escrevo. Por sobre a fama
da minha terra, o laço
dobrado de uma companha abrindo
na flor de fateixa.
Um plástico por cima de dois
pescadores mortos, oh, minha terra,
tu choras genuinamente.

Recebo o velho manuscrito
dos pintores que pintam com a boca
e com os pés e um envelope
que diz escritor. Até mais ver.
Os melhores cumprimentos. (Muito)
cordialmente. É como cada livro
ser um morto, velado
a cada página torta e com a lamparina
dos mistérios toda pronta.
Vamos em fila, há sempre
um poço ao meio, um mar
que nos leva, justamente."

Helder Moura Pereira
Um raio de sol
assírio & alvim
setembro de 2000


* apeteceu-me deixar aqui este poema, só porque completa o meu domingo, ou a tristeza da soma dos sete dias da semana.