duas ou três coisas que me contou lucrécia l.

Estou sempre de luto e tenho a idade desta ilha. Agora olhe para as minhas mãos. Parecem limpas, não é? E no entanto já mataram, por paixão e por vingança. Por paixão porque aquilo que não me pode pertencer não pertencerá a mais ninguém; e por vingança porque às vezes o sangue limpa a dor da alma, e a honra…
Sou dona do dia e da noite, e deste mar que nos há-de levar.
Vá! Prove estas uvas envenenadas.
Foi com elas que a minha avó acabou com o marido, e a minha mãe matou o meu pai, e eu enveneno os homens que me querem possuir.
Sou dona do dia e da noite, e do veneno destas uvas. Ninguém me pode possuir.
O Outono é a melhor altura do ano para envenenar os amantes.
Nunca saí da ilha. Para quê? Diga-me…
O luto? O luto defende-se contra a sensualidade, por vezes brutal, dos homens.
Sabe, às vezes, quando estou ocupada a arrumar a casa sobe-me um estremecimento pelo corpo. Já estou habituada. Paro com tudo. Fico especada a um canto da casa, tolhida. Nem um gesto ouso fazer.
Então, ao fim de alguns minutos, dá-me uma vontade incontrolável de falar sozinha. O meu corpo deixa de tremer e as palavras nascem da minha boca, assim, sem esforço.
Lembro-me, não sei bem como, de quando a minha mãe me teve. Suponho que me contaram como foi, mas não tenho a certeza de nada. Quando penso nisso, a sensação que me possui é a de ter assistido ao meu próprio nascimento. E assim acontece com as outras coisas da minha vida.
Sempre me surpreendeu esta capacidade de ter sido espectadora dos meus próprios actos e dos acontecimentos em que estive envolvida.
Tenho tantos filhos quantos peixes há no mar. Os pássaros que voam, no Inverno, em direcção ao continente, fui eu que os gerei. Passei a vida a parir. Alguém tinha de se dedicar a este trabalho de povoamento. Esta ilha estava nua, queimada. O meu ventre foi a arca misteriosa onde se gerou tudo o que respira e se move.
Eu fui a Mãe-da-Terra.
Agora descanso, sinto-me velha. Vejo o mar que me cerca e durmo sem sobressaltos. Quieta como uma pedra, percorro as entranhas da ilha, desço pela raiz até encontrar o fogo que persiste vivo para lá do fundo do mar. E o meu pensamento arde na desolação destas terras.



Al Berto

O Anjo Mudo
Contexto, 1993

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