o crime imaculado / luís carmelo

(...)
Sim, mas se amanhã a vida acabasse, que faríamos nós os dois? Quando? Agora? E eu a ver-me a dizer coisas patetas. Sem nexo. "Querem-nos fazer interiorizar a passividade, a inércia, a capacidade de agirmos, de nos afirmarmos, não é?". Ela a concordar, a acenar com a cabeça, lá muito ao longe, é do ambiente do Natal, "Não é?". "Não sei". Um trago leve no olhar, no encantamento das mãos quase abertas sobre o tampo da mesa. E depois, sem outros sinais, mas com a voz liquescida e lenta, repetiu por duas vezes que dormiríamos o sono dos justos até voltar a ser dia, até voltar a ser nada. Até elidirmos a frase, a imaginação, o mundo, o que se quisesse. "O que seria, afinal, este mundo sem vida, amanhã de manhã? Mas dormiríamos mesmo?" E como? Perguntei eu, apenas a mim. A mais ninguém.



Luís Carmelo
A Pé pelo Paraíso
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