Estou, afinal, perto do mar e da sua ciência. Ninguém pode exigir ao mar que traga todos os barcos, ou ao vento, que encha todas as velas. De igual modo, ninguém tem o direito de me exigir que viva prisioneiro de certas funções. A minha divisa não é o dever antes de tudo, mas a vida acima de tudo. Como os outros homens, tenho direito a alguns momentos em que possa sentir-me à parte, em que possa saber que para além de pertencer a essa massa anónima chamada população mundial, sou também uma unidade autónoma.
Só nesses instantes me liberto de tudo o que na minha vida foi causa de desespero. Reconheço que o mar e o vento não deixarão de me sobreviver e que a eternidade nem sequer de mim se lembra. Por que me hei-de eu lembrar dela? A vida só é curta se a coloco no patíbulo do tempo.
As suas possibilidades só são ilimitadas se me ponho a contar o número de palavras ou livros que a morte me dará ainda tempo de acender.Mas por que me hei-de eu pôr a contar? No fundo, o tempo de nada serve, inútil instrumento de medida que só regista o que a vida já me trouxe.
Na verdade nada do que é importante e acontece e me faz vivo, tem a ver com o tempo. O encontro com um ser amado, uma carícia na pele, a ajuda no momento crítico, a voz solta de
uma criança, o frio gume da beleza- nada disso tem horas ou minutos.
Tudo se passa como se não houvesse tempo. Que importa se a beleza é minha durante um segundo ou por cem anos? A felicidade não só se situa à margem do tempo, como nega toda a relação deste com a vida.
Assim, num só movimento, liberto os ombros do peso de dois fardos : o tempo e as tarefas que teimam em me exigir. Nem a vida é mensurável, nem viver é uma tarefa. O salto do cabrito ou o nascer do sol não são tarefas. Como há-de sê-lo a vida humana- força surda a crescer na dor da perfeição? E o que é perfeito não desempenha tarefas. O que é perfeito labora em estado de repouso. É absurdo pretender que a função do mar seja exibir armadas e golfinhos.
Evidentemente que o faz - mas preservando toda a sua liberdade. Que outra tarefa a do homem, senão viver? Faz máquinas? Escreve livros?
Faça o que fizer, poderia muito bem fazer outra coisa. Não é isso que importa.
Importa é saber-se livre como qualquer outro elemento da criação.
Importa é saber-se um fim autónomo, que repousa em si mesmo como uma pedra sobre a areia.



Stig Dagerman
A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer
Fenda, 2004

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