Hospital

O medo andava por perto nessa madrugada,
visitando cada quarto, cada respiração,
assomado às janelas que reflectiam a alta noite.

Nos corredores brancos
o corpo estava na posse de si mesmo,
na posse contemplativa, póstuma,
na mesma posse sem solução
que se escoava entre os ferros da cama.

Era um corpo acordado
que nunca tinha observado o mesmo rectângulo
de noite até nos fazer mal, que não imaginava
a memória como uma incisão imperceptível,
as mãos ao longo do tronco, os olhos azuis de medo.

Era um hospital sereno, um medo sereno,
a mente pronta para o retrato final.
E tudo quebrado, como os vidros para lá da noite.



Pedro Mexia
Vida Oculta
Relógio D´Água, 2004

2 comentários:

bruno vilar disse...

Fantástico.

mar disse...

hm. eu gosto de pedro mexia, gosto sobretudo deste hospital que me faz lembrar o medo de Alexandre O'Neill:

"O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos.

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
optimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer).

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos"