Efeito secundário (lado B

O acto simples de estender a mão na luz e tocar-te

irá coincidir com os meus dedos a transformarem-se

em cores, nuvens de pó lançadas no ar. Esse será o

primeiro efeito da magia. Chamar-lhe-emos magia

por causa das crianças, mas saberemos que, em rigor,

será apenas uma ilusão. Talvez seja nesse instante

que os lábios começarão a fazer o playback de todo

o silêncio, como um beijo antigo, gravado noutro

disco. O efeito secundário dessa fotografia, desse

postal, desse pôr-do-sol, será um bombardeamento

de planos para o futuro, filhos em projecto, iremos

escolher mil nomes para menino, mil nomes para

menina, iremos perder tempo a pensar nos nomes

que daríamos se fôssemos ingleses, americanos, e

falássemos em inglês, americano, como as pessoas

felizes e garridas dos filmes de domingo à tarde

no primeiro canal, ou franceses e chatos, como as

pessoas tristes dos filmes de segunda-feira à noite

no segundo canal. O primeiro efeito desse instante

será um ardor à volta dos lábios ou a repetição da

guerra do Vietname, da mesma maneira que um

ciclone na China faz uma borboleta bater as asas

e pousar-me involuntária entre os olhos, asas como

óculos de cor, nuvens de pó lançadas no ar, ou

como esperança apregoada nas ruas por multidões

indecisas, confusas, incertas, frágeis, feitas de

homens humanos, mulheres humanas e crianças-

-crianças, futuros homens e futuras mulheres,

prontos a repetirem todas as nossas dúvidas e todas

as vezes que olhámos o horizonte. E talvez o seu

melhor momento seja um espelho estragado, um

penteado definitivo ou a constatação humilde

de não serem mágicos, mas ilusionistas, donos

de um espectáculo honesto, como nós agora

a sermos o efeito principal e secundário de tudo

o que chega a nós, de tudo o que parte de nós,

de tudo o que nos ignora, nos transcende e nos

lança pela eternidade a partir do instante simples

em que estendo a mão na luz e, simples, te toco.




José Luís Peixoto
(Incluído no disco dos Sebenta com o mesmo título).

3 comentários:

bruno vilar disse...

Brilhante.

L.N. disse...

é mesmo.

tenho lido pela blogosfera inúmeros comentários nada abonatórios acerca do senhor, mas digam o que disserem, tem coisas que gosto bastante como é o caso.

moriana disse...

muito bonito, luminoso.

aprendi a confiar apenas no que me trensmitem os meus olhos (que falem, que digam, o olhar é sempre diferente)

beijo,