as palavras foram alinhavadas pelos preguiçosos dedos
o texto transparece na claridade das manchas de tinta
teço a ausência dum corpo que me é absolutamente necessário, doem-me estes gestos
estas coisas cobertas de pó sobre a mesa: papéis amarrotados, fotografias, cartas interrompidas, objectos quebrados, sinais ténues de gordura e de fundos de chávena
lápis, cigarros esboroados, o revólver
num dos cantos inacessíveis da casa, as aranhas vão construindo ninhos diáfanos
segregam sábios labirintos em perigosa baba
sinto-me vazio, hoje
a compreensão do mundo escapa-me, pouco me importo com isso
está tudo muito calmo, em redor da casa, o jardim quieto
poderia passar o dia a ler, por desfastio, à maneira dos príncipes persas
a tarde torna as madeiras rubras, aquece
os livros parecem de pedra em seu arrumo cauteloso
ao alcance está o revólver
perto da mão que nunca aprendeu a escrever, aquece ao simples contacto dos dedos
a outra mão, a direita, definhou um pouco quando aprendeu o silencioso ofício
eu explico: hoje deve ser domingo
e a mão esquerda masturba enquanto a direita escreve com destreza, sem cessar
mais tarde, escrevia eu
poderiam as mãos trocar de ofício
o revólver tingir-se-ia de tinta permanente, o papel apresentaria o terrível sulco de uma bala.
Al Berto
O Medo
Assírio & Alvim, 2005
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