«Passaram ali o dia, sentados no meio dos caixotes de madeira e de
cartão. Tens de falar comigo, disse ele.
  Eu não deixei de falar contigo.
  Tens a certeza?
  Estou a falar agora.
  Queres que eu te conte uma história?
  Não.
  E porque não?
  O rapaz olhou-o e desviou o rosto.
  E porque não?
  Essas histórias não são verdade.
  Não têm de ser verdade. São histórias.
  Sim. Mas nas histórias nós estamos sempre a ajudar pessoas, e nós
não ajudamos ninguém.
  Porque é que não me contas tu uma história?
  Não quero.
  Está bem.
  Não tenho histórias para contar.
  Podias contar-me uma história sobre ti.
  Tu já sabes todas as histórias sobre mim. Estavas presente.
  Tens histórias dentro de ti que eu não conheço.
  Sonhos, é isso?
  Sonhos, sim. Ou apenas pensamentos, coisas que te ocorrem.
  Pois, mas as histórias, em princípio, deviam ser alegres.
  Não têm de ser.
  Tu contas sempre histórias alegres.
  Tu não pensas em histórias alegres?
  As minhas são mais parecidas com a vida real.
  Mas as minhas não.
  As tuas não. É verdade.
  O homem observou-o. A vida real é muito má?
  O que é que tu achas?
  Bom, acho que ainda aqui estamos. Aconteceram imensas coisas
más, mas nós ainda aqui estamos.
  Pois.
  Tu não achas que isto seja assim tão bom como isso.
  É bom, pois.

  Tinham arrastado uma mesa de trabalho para junto das janelas e es-
tendido os cobertores por cima e o rapaz deitara-se sobre o tampo, de
barriga para baixo, a contemplar a baía. O homem sentara-se, de per-
na estendida. Na manta, entre ambos, estavam as duas pistolas e a cai-
xa de foguetes. Ao fim de um certo tempo, o homem disse: Acho que
é muito boa. É uma história muito boa. Tem imenso valor.
  Acho que sim, papá. Mas eu só queria ficar um bocadinho sosse-
gado.
  Então e sonhos? Dantes contavas-me sonhos, de vez em quando.
  Não quero falar sobre nada.
  Está bem.
  Seja como for, não tenho bons sonhos. São sempre sobre coisas
más que estão a acontecer. Disseste que não havia problema, porque
os sonhos bons não são bom sinal.
  Talvez. Não sei.
  Quando acordas a tossir, afastas-te pela estrada fora ou para outro
lugar qualquer, mas mesmo assim eu ouço a tua tosse.
  Desculpa.
  Uma vez ouvi-te chorar.
  Eu sei.
  Se me dizes para eu não chorar, então tu também não devias chorar.
  Está bem.
  A tua perna vai ficar boa?
  Vai.
  Não estás a dizer isso só por dizer?
  Não.
  É que a ferida parece mesmo grave.
  Não é assim tão grave como isso.
  Aquele homem tentou matar-nos. Não foi?
  Foi, sim.
  Tu mataste-o?
  Não.
  Isso é verdade?
  É.
  Está bem.
  Assim ficas mais descansado?
  Sim.
  Pensei que não quisesses falar.
  E não quero.»



Cormac Mccarthy
A Estrada
Relógio D` Água, 2007
Tradução de Paulo Faria

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