Quando a lua vier tocar-me o rosto

Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e aquele que procurar a marca dos teus passos
encontra urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e uma gota de sangue ressequido
é a marca dos teus passos.
No coração do tempo pulsa um mecanismo ínscio
e na casa do tempo a hora é adorno.
Quando a lua vier tocar-me o rosto a tua sombra extinta marca
o fim de um eclipse horário de uma partida iminente e o tempo
apaga a marca dos teus passos por sobre o meu nome.
Constante.
O mar é isso.
A lua vir tocar-me o rosto e encontrar urtigas crescendo por sobre
o teu nome.
O mar é tu morreste.
O mar é ser noite e vir a lua tocar-me o rosto quando tu partiste
e no meu leito crescem folhas sangue.
A velocidade do sangue é tu partiste.
A febre é uma pira incompreensível como a aparição da lua e a
opacidade do mar.
No meu leito a lua vai tocar-me o rosto e a tua ausência é um
prisma, um girassol em panóplia.
Agora a lua chega devagar e o mar é o leito de tu teres partido,
uma infrutescência de eu procurar a marca dos teus passos por sobre
o meu rosto.
A noite é eu procurar a marca dos teus passos.
Esta noite a lua terá um halo de concêntricas florações de gotas
do teu sangue e a irisada sombra do meu leito é o teu rosto iminente.
A lua é uma seta.
Tu partiste é o silêncio em forma de lança.
Esta noite vou erguer-me do meu leito e quando a lua vier tocar-me
o rosto vou uivar como um lobo.
Vou chamar pelo teu sangue extinto.
Vou desejar a tua carne viva, os teus membros esparsos, a tua língua
solta.
O teu ventre, lua.
Vou gritar e enterrar as unhas nos teus olhos até que o mar se abra
e a lua possa vir tocar-me o rosto.
Esta noite vou arrancar um cabelo e com a tua ausência faço um
pêndulo para interrogar a lua por tu teres partido e a marca dos teus
passos ser a razão mágica de a lua poder surgir de noite e urtigas
crescerem no meu leito.
E se encontrar a marca dos teus passos vou crivar-lhe o coração de
alfinetes para que tu partiste seja a razão mágica de tu poderes
morrer-te.
Quando a lua vier em forma de lança vai trespassar um pássaro
para lhe ler nas entranhas a direcção tu partiste e a marca dos teus
passos consiste nos olhos abertos de um pássaro esventrado.
Ah, mas o luar é uma pluma do meu leito e a lua é o colo de
tu morreste para poderes enfim tocar-me o rosto.



Ana Hatherly
Sigma
Lisboa: Ed. Aut., 1965

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