«Quinta hipótese: os intrusos seriam um grupo de mortos amigos; eu, um viajante, como Dante ou Swedenborg, ou se não outro morto, de outra raça, num momento diferente da sua metamorfose; esta ilha, o purgatório ou céu daqueles mortos (fica enunciada a possibilidade de vários céus; se houvesse só um e todos para lá fôssemos e nos esperasse aí um casamento encantador com todas as suas quartas-feiras literárias, seríamos já muitos a ter deixado de morrer).
Compreendia agora que os romancistas nos proponham fantasmas que se lamentam. Os mortos continuam entre os vivos. Custa-lhes mudar de costumes, renunciar ao tabaco, ao prestígio de violadores de mulheres. Fiquei horrorizado (pensei com teatralidade interior) por ser invisível; horrorizado por Faustine, próxima, estar noutro planeta (o nome Faustine deixou-me melancólico); mas estou morto, estou fora de alcance (verei Faustine, vê-la-ei a ir-se e os meus sinais, as minhas súplicas, as minhas tentativas, não a poderão atingir); todas as soluções medonhas são apenas esperanças frustradas.
(…)
É assombroso o invento ter enganado o inventor. Também eu acreditei que as imagens tinham vida; mas a nossa situação não era a mesma: Morel tinha imaginado tudo; tinha presenciado e conduzido o desenvolvimento da sua obra; eu deparei com ela finalizada, a funcionar.
Esta cegueira do inventor a respeito do invento é surpreendente, e recomenda-nos circunspecção nos juízos… Talvez eu esteja a generalizar acerca dos abismos de um homem, a moralizar a partir de uma peculiaridade de Morel.
Aplaudo a orientação que, sem dúvida inconscientemente, ele imprimiu aos seus tacteios de perpetuação do homem: limitou-se a conservar as sensações; e, embora equivocando-se, predisse a verdade: o homem, só, há-de aparecer. Em tudo isto poderá ver-se o triunfo do meu velho axioma: não se deve tentar conservar vivo o corpo todo.»
Adolfo Bioy Casares
A Invenção de Morel
Antígona, 2003
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