Para o Egon.
é tão ruidoso aquele bater do vento nas mãos
é tão límpido também aquele cheiro nauseante da aguarrás
poderia dizer-te vem e vamos pegar fogo a esta casa
e mudamo-nos para aquele canto
pôr nas palavras o pastoso sabor da cor
e passar pelo corpo os pincéis e a língua de gato
embebedarmo-nos com terebentina tomarmos mescalina
e outras coisas felizes compradas na feira
nas radiantes tardes naquele estúdio pequeno em frente ao mar
é tão ruidosa a existência de alguma coisa que começa
as telas encaixotadas a caminho de Bombaim
vão todas a arder mas não faz mal
é tão límpida cada mancha nos teus dedos
poderia envolver-me nos braços em teu redor
perguntar-te queres café compor-te o cabelo
adormecer no seguimento do cigarro
enquanto pintavas a noite nas paredes
é tudo tão ruidoso tão repentino
que não houve tempo de escolher as cortinas
com outros cuidados desculpa
também elas se põem todas a arder mas não faz mal
poderia pedir-te que me dissesses um poema longo
perguntar-te queres café compor-te o cabelo
enquanto escrevias os meus braços nas paredes
com marteladas fundas mas delicadas
nas paredes daquele pequeno estúdio em frente ao mar
há um ruído muito nosso
que passa em todas as estações de rádio e ninguém ouve
em todas as gasolineiras e ninguém ouve
em todas as tribunas e ninguém ouve
ele cabe ali naquele caos naquele vislumbre
e também ele se põe todo a arder mas não faz mal
o teu corpo é uma luva onde entro quando entras
uma luva à prova da bala que arde violentamente
à nossa procura
na pequena galeria dos cristais de sangue
a poesia acontece disparar abrir fogo
e o universo, naquele pequeno estúdio em frente ao mar,
não precisa de um desenho para nascer
quando dizes estou aqui a sorrir
e pegas na minha mão para o passeio habitual
depois de vestirmos os casacos de lã.
Ana Salomé
Odes
Canto Escuro, 2008
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