«Molero fala da outra parte da verdade que se escapa», disse Austin, ajeitando o relatório nos joelhos, «fala da vida que se esconde em cada ser, do fluido em que essa vida continuamente se perde e reencontra, esse universo privado de sensações subtis que perseguimos e nos perseguem». Houve uma pausa. «Diz ele», disse Austin, «que o relatório omite tudo o que ele, Molero, não sabe, apenas entrevê às vezes no seu emaranhado de notas, de observações, de ideias, de associações de ideias, ficando, de qualquer modo, e para sempre, a certeza de que falta uma parte vital dessa vida, a sua substância mais alada, a vida de um homem é sempre mais pesada, e também mais leve, sempre mais ampla, do que a avaliação dela feita por outro, o relatório é apenas um esforço orientado numa linha eminentemente superficial, e ai dele, Molero, se a sua jactância o levasse a pensar que estava a fazer mais do que isso». Mister DeLuxe acenou com a cabeça. «Diz ele», disse Austin, «que há um súbito cheiro a jasmim trazido por brisa inesperada, um súbito olhar límpido de uma mulher num súbito terraço, uma bola amarela de criança que vem devagar tocar-nos nos pés, qualquer coisa de violino, ou qualquer coisa de harpa, que vem de qualquer coisa que é noite, ou apenas silêncio, uma luz filtrada de pausa em certo fim de tarde, o mar que chega à praia deste peito, a onda que se estende quando chega, um cisne sem lago subindo o colo daquela mulher, ou a sua nudez ansiada como espuma de carne num lençol, a curva a que a mão dá o contorno, o cansaço nos lábios mordendo o cigarro, a amplidão de repente feita olhar, um grilo vem dos nossos campos de outrora e canta na noite, o sabor do café na manhã clara, uma saia que roda e faz fru-fru, a luz que rompe, rindo, em face suja, alguém recupera música esquecida assobiando, a madeira velha larga um odor de tudo o que apetece voltar a ter, um amigo chega, bate à porta e lembra-nos o que somos, uma frase atirada ao acaso dirige-se directamente ao coração de alguém, há uma gare que se percorre o tal abraço, um pedaço de relva enrola-se nos dedos distraídos, um barco ao longe está parado e leva-nos, é de um verde tropical o cenário que se enfeita, faço áleas de repente por saber que vens aí, e é como passear galeras ou palmeiras, ou alegria, ou esta primavera alvoroçada, este encontro marcado fonte e folha, brotas da geometria de um canteiro, o espaço exacto, há uma gota de orvalho no teu ombro, a gota de orvalho que há no teu ombro reflecte tudo o que é puro, matinal, tudo o que é puro e matinal em mim, embora eu já nem saiba como dizer tudo isto.»



Dinis Machado
O Que Diz Molero
Bertrand Editora, 2007

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