«Com algumas outras verdades, descobri a pouco e pouco estas evidências, durante o período que se seguiu à noite de que lhe falei. Não imediatamente, não, nem com grande nitidez. Tive, antes de mais, de recuperar a memória. Gradualmente, fui vendo mais claro, aprendi um pouco do que sabia. Até ali, tinha sido sempre ajudado por uma espantosa faculdade de esquecimento. Esquecia tudo e em primeiro lugar as minhas resoluções. No fundo, nada contava. Guerra, suicídio, amor, miséria, prestava-lhes atenção, é certo, quando as circunstâncias a isso me obrigavam, mas de uma maneira cortês e superficial. Por vezes, fazia menção de me interessar por uma causa estranha à minha vida quotidiana. No fundo, porém, eu não participava nela, salvo, é certo, quando a minha liberdade fosse contrariada. Como dizer-lhe? Tudo isso resvalava. Sim, tudo resvalava por mim.

(…)

Chegou o dia em que não pude mais. A minha primeira reacção foi confusa. Já que era mentiroso, ia manifestá-lo e jogar com a minha duplicidade à cara de todos aqueles imbecis, antes mesmo que a descobrissem. Levado à parede, responderia ao desafio. Para me precaver contra o riso, imaginei então lançar-me à irrisão geral. Em suma, tratava-se ainda de escapar ao julgamento. Queria pôr do meu lado os que riam ou, pelo menos, pôr-me do lado deles. Pensava, por exemplo, em empurrar os cegos na rua, e, à alegria surda e imprevista que isto me dava, descobria até que ponto uma parte da minha alma os detestava; projectava furar os pneus dos carrinhos de aleijados, ir berrar “pelintras” sob os andaimes onde trabalhavam os operários, esbofetear as crianças de peito no metropolitano. Sonhava com isso tudo e nada fiz ou, se fiz alguma coisa parecida, esqueci-me. O certo é que a própria palavra justiça me punha fora de mim. (…)»



Albert Camus
A Queda
Edição Livros do Brasil, s/d
Tradução revista de José Terra

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