Por um pouco não caí na armadilha do espelho. Evito-o, mas é para tropeçar na armadilha do vidro: desocupado, de mãos a abanar, aproximo-me da janela. As obras, a paliçada, a estação velha - a estação velha, a paliçada, as obras. Bocejo com tanta força que me vem uma lágrima aos olhos. Tenho na mão direita o cachimbo e na esquerda a bolsa do tabaco. Era preciso encher o cachimbo. Mas falta-me a coragem. Deixo cair os braços, encosto a testa ao vidro. Aquela velha, além, irrita-me. Vai num choutozinho teimoso, de olhos no vago. Às vezes pára com um ar amedrontado, como se um perigo invisível tivesse roçado por ela. Ei-la por baixo da minha janela; o vento cola-lhe as saias aos joelhos. Pára, compõe o lenço. Tremem-lhe as mãos. Lá vai outra vez: agora vejo-a de costas. Velho bicho-de-conta. Suponho que vai virar à direita, para o Boulevard Noir. Tem ainda uns cem metros a percorrer, para o que precisará, pelo andar com que vai, duns bons dez minutos; dez minutos durante os quais ficarei como estou, a olhar para ela, de testa colada ao vidro. Vai parar vinte vezes, retomar a marcha, parar outra vez...
Vejo o futuro. Está ali, pousado na rua, mais pálido um tudo nada que o presente. Que necessidade tem de se realizar? Que vantagem é que isto lhe dará? A velha afasta-se, trôpega, pára, compõe uma madeixa que lhe saiu de debaixo do lenço. Recomeça a andar: ainda agora estava além, agora está aqui... torna-se tudo confuso: eu vejo ou prevejo os gestos dela? Já não distingo o presente do futuro, e, todavia, há uma duração, uma realização, que se opera pouco a pouco; a velha avança na sua deserta, desloca os seus grandes sapatos de homem. É isso o tempo inteiramente nu, que acede lentamente à existência, se faz esperar, e que, quando chega, nos enfastia, porque conhecemos então que já estava ali havia muito. A velha aproxima-se da esquina da rua; é apenas, agora, um montinho de pano preto. Pois bem, sim, concedo, há nisto algo de novo: ela não estava ali há bocadinho. Mas é um novo desbotado, sem viço, que nunca poderá surpreender. A velha vai dobrar a esquina da rua, leva imenso tempo a dobrá-la - uma eternidade.



Jean-Paul Sartre

A Náusea
Publicações Europa-América, 1976
Tradução de António Coimbra Martins

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