«Eva deslizou, deitou-se na cama e deixou a janela aberta, uma noiva, o cinzento espesso sufocava-a, pôs os olhos no tecto à espera de perceber, começou a procurar indícios, achava-o estranho, tinha sempre pressa quando se encontravam, gastava mais dinheiro, parecia feliz, era isso, quase parecia feliz, era isso que Eva estranhava, o ar ausente tão próprio dos apaixonados, de olhos fixos no tecto tentava apanhar a verdade para a destruir, não pode estar noivo, encontrava-se com ele sempre que queria, foi a primeira vez que faltou a um encontro, sempre teve aquele sorriso tonto, sempre foi um caso perdido, a verdade, saiu de manhã cedo com a noiva, as palavras do reformado aos tombos na cabeça, ele desmentiria tudo, tinha a certeza, quando o visse chegariam à conclusão que era um mal-entendido, rir-se-iam, noiva, saiu de manhã com a noiva, ele rir-se-ia, e a estranheza daquele ar quase feliz, a esperança no ano novo, fico sempre assim em vésperas de um ano novo, não deveria ter acreditado, há quanto tempo não tens ninguém, sempre ficou calado, deixava que ela o beijasse nos lábios, estão noivos, eles dizem que sim, as palavras do reformado aos tombos na cabeça, ele estava noivo e no quarto da casa grande, Eva enrolou-se sobre si mesma para chorar, não viu mais nada, não quis compreender, um caso perdido, é capaz de tudo até de trair, se não morasse tão longe, se não tivesse que esperar pelo marido que viria jantar como noutro dia qualquer, Eva continuou enrolada sobre si a chorar, o peito tão apertado, há quanto tempo ele a traía, o frio entrava e enroscava-se em Eva que continuava deitada, deixou-se ficar, um vazio tão grande, e se ficasse assim para sempre sem sentir mais nada a não ser aquele vazio, o que fazer com a certeza que tinha, uma noiva, se me aperceber que tu me enganaste sou capaz de te matar, e ele tinha-a traído, deixou-se ficar a chorar sobre si mesma, o frio em todo o corpo, não sabia libertar-se daquele amor tão exagerado, quase uma doença, és um caso perdido, nunca serás capaz de amar alguém, o que fazer com os casos perdidos que eram os dois, foi o que Eva lhe disse no dia em que entregaram as chaves da casa, foi a única vez que lhe disse, não consegues amar-me, não consigo deixar de te amar, somos dois casos perdidos, se descobrir que me enganaste sou capaz de te matar, uma noiva, um frio em todo o corpo, o cinzento cada vez mais espesso, o que somos nunca está ao alcance da nossa vontade, e se fosse mesmo verdade, se ele quebrasse para sempre a ilusão, não podia perdoá-lo, cada pessoa tem a sua utilidade, tinha coberto de mágoa o seu amor tão exagerado, quase uma doença, há muito tempo que se tinha completado com aquele amor, o que iria agora colocar no vazio que lhe crescia no peito, Eva chorou durante muito tempo enrolada sobre si, no quarto da casa grande junto ao mar e quando anoiteceu, os dias no inverno são tão pequenos, Eva tinha adormecido.»
Dulce Maria Cardoso
Campo de Sangue
Edições ASA, 2002
Dulce Maria Cardoso
Campo de Sangue
Edições ASA, 2002
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