Desilusão

Podem não acreditar mas foi na rua que o meu estômago caiu no chão. Fez aquele som sumido que se ouve num garrafão de cinco litros de água do Luso quando tomba de lado com mais violência. E não me doeu; pelo menos não imediatamente; se não me engano só me doeu duas horas depois, quando um indivíduo apressado e desatento, que seguia ziguezagueando entre os transeuntes ordeiros, me pontapeou inadvertidamente o estômago e este rodopiou no pavimento cimentado como um saco cheio de lixo. Sim, foi nessa altura que me curvei sobre o abdómen ao sentir a guinada violenta a arrancar o resto de vida das minhas entranhas.

A consequência maior foi paralisar-me. Como havia de me deslocar com o estômago de rojo? E aquelas vísceras soltas, como elásticos esticados, davam-me um ar deselegante.

Uma sensação de avaria técnica invadiu-me e trouxe-me ao espírito um episódio do meu tempo de faculdade. Um amigo meu tinha a sorte de ser proprietário de uma velha Dyane branca, tão podre quanto vetusta, mas claramente «apetrechada de asas», bastando abastecê-la com mil escudos de gasolina de tempos a tempos. Um dia o pai desse meu amigo veio vê-lo a Coimbra e resolveu presentear o filho atestando-lhe o depósito do carro. Mas o velho corcel não estava habituado a tanta generosidade de combustível e, quando o depósito ficou cheio, os velhos pontos de fixação do depósito, não habituados àquele peso, cederam e este tombou inteiro no chão gerando uma teoria de sucata que as nossas experiências aladas tinham vindo a contrariar.

Mas ninguém lhe deu pontapés.

Acho que fiquei horas parado com o estômago no chão, agarrado a mim por todo o tipo de vísceras viscosas e elásticas. Minto. Fiquei dias ali parado. Minto outra vez. Fiquei semanas naquele passeio indiferente. As pessoas passavam por mim e apenas se desviavam. Um advogado espreitou aquela circunstância e sugeriu uma troca de honorários por liberdade; um psicólogo aplicou-me testes psicométricos sem olhar o meu estômago. É verdade que ninguém me voltou a acertar a pontapé. Mas também ninguém me ofereceu de beber ou de comer.

Acho que sabem que um estômago daqueles não volta a dar fome.



Pedro Miguel Gon
daqui

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