«Depois das sete, em princípio já os trabalhadores voltaram para casa. As mulheres estão à volta com a loiça, o macho enrosca-se nas ondas do rádio. Vitruve põe de lado o meu romance e vai então à caça da subsistência. Lá calcorreia de porta em porta com as suas meias de malhas caídas, os seus jerseys que não têm marca. Antes da crise ainda ela se ia defendendo por causa do crédito e da maneira como atordoava os fregueses, mas contos do vigário como o dela dão-no agora de prémio aos recalcitrantes da vermelhinha. Já não são condições leais. Ainda tentei explicar-lhe que tudo isso era por culpa dos bons dos Japoneses... Não acreditava. Acusei-a de me ter dissolvido de propósito a minha linda Lenda nas suas próprias imundícies...
- É uma obra-prima! acrescentava eu. Com certeza que hão-de dar com ela!
Levou a coisa para a galhofa... Resolvemos os dois toda aquela cangalhada.
A sobrinha acabou por chegar, atrasadíssima. Era ver as ancas dela! Um verdadeiro escândalo de peida... Toda plissada a saia... Para sublinhar bem. O acordeão da racha. Nada se perde. O desempregado é um desesperado, é um sensual, não tem um chavo para convidar. Isto tem o seu proveito. «Que boa panela!» lançam-lhe eles... Mesmo na cara. No fundo dos corredores, à força de entesar por dá cá aquela palha. Os rapazolas de feições mais finas que os outros são os mais aptos a deitar-lhe o dente, a deixar-se embalar na vida. Só mais tarde é que tal aconteceu é que ela que desceu à rua para se defender!... depois de uma série de catástrofes... Mas por enquanto era só por divertimento.
Também não deu com ela, com a minha linda Lenda. Estava-se nas tintas, ela, para o «Rei Krogold»... Era só a mim que a coisa moía. A escola da malandrice era o Petit Panier, um pouco antes da estação do caminho de ferro, a verbena da Porta Brancion.
Elas, quando eu me enfurecia, não tiravam os olhos de mim. «Borra-botas» como eu era no ver delas, continha-me o mais possível! Punheteiro, tímido, intelectual e tudo. Mas agora para minha surpresa estavam com cagaço que eu me pisgasse. Se eu me pusesse ao largo, bem gostava de saber o que é que elas iriam engendrar? Sossega que a tia estava sempre a pensar nisso! Não era um sorriso, era um esgar que elas faziam mal eu falava vagamente em viagens...
A Meirelle, para além daquele cu de espanto, tinha uns olhos de romança, um olhar cativante, mas um nariz sólido, uma penca, sua verdadeira penitência. Quando a queria humilhar um pouco « Palavra, Meirelle! dizia-lhe eu, tens mesmo um nariz de homem!...» Sabia contar também lindas histórias, gostava daquilo, como um marinheiro. Inventou a princípio mil coisas para me dar prazer e depois em seguida para me prejudicar. Eu o meu fraco é gostar de ouvir boas histórias. Ela abusava, é tudo. As nossas relações vieram a descambar em violência, mas ela mereceu mil vezes essa dança, mereceu ter-se espalhado. Acabou por reconhecê-lo. Ainda muito generoso fui eu... Castiguei-a com boas razões.... Toda a gente o disse... Gente que sabe...»
Louis-Ferdinand Céline
Morte a Crédito
Assírio & Alvim, 1986
Tradução de Luiza Neto Jorge
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