não some, que eu lhe procuro, e lhe boto
faca à garganta, ou lhe boto
na cabeleira tanta tanto fogo que você vira incêndio
em que se não tem mão, puta,
eu sei mas não me importa, quero é te apanhar
em uma braçada como de espuma,
mas se some eu lhe dano, essa sim, a puta de sua vida,
alta criatura chegada na terra muda,
em todo lado,
o dia todo,
a noite toda,
como se vê que uma árvore tem tanta folha luzindo
em toda parte dela e do vento e do tempo
e de minha ideia,
não some não, que eu desmundo
cada sítio do mundo onde
você estava ou está ou há-de estar, e comunico só do toque
que lhe ponho num mamilo,
no umbigo,
no clitóris,
na unha mindinha do pé esquerdo,
só porque tu estremece dos estudos de meus dedos exultantes,
não some nunca, fica morrendo de meu sopro,
ou dá luz como folha contada uma por cima de outra
que é isso: puta?
pequena se fôr às raízes latinas,
mas tudo cresceu e tamanho, grão de cobre
esparzido pelas capitais do corpo: púbis, cabeça
porque você é tão cerrada em sua vida própria,
trigo na noite,
excessiva beleza terrestre bruxuleando um pouco adentro,
que bèsteira de lhe chamar de puta,
de pequena
ou mesmo se lhe chame de grande puta,
se der o fora
ai dolor!
se sabedes novas da minha amiga, socôrro de minha baixa biografia.
ai Deus e u é?
vou à procura, encontro, jógo
vitríolo em teu rosto, desfiguro, ou com o calor da mão te lavro
por você acima,
casa ardendo cheia de uma estrela incalculável,
ah minha boca lhe come externa de nenhuma roupa sôbre que
carne soberba!
das plantas dos pés às pálpebras,
inteira,
e outra vez dos giolhos ou joelhos, como queira, à côna, e da côna,
divertimento linguístico lato sensu,
ao rés da penugem na testa rápida, amor,
não provoque, não some, que esse
beijo que agora coméço é para não
acabar nunca,
não queira que eu vá crer em Deus e pedir milagre,
fique, tão puta quanto seja, com
seu jeito de água marítima,
balançando, menininha, barca bêbeda,
mas enredada em mim como o alimento luminoso.
ah se incendeie a gente um do outro, que morte
ou vida mais total
não há, não some não, amor
da puta de minha vida indistinta,
noite onde me envôlvo para sempre,
que simples, contudo, com tudo isso, que é se cruzar com o mundo,
fique, fica junto, funda fêmea, que você já me está
fundada no sangue desde que outrora, e agora, e na hora da nossa



Herberto Helder
A Faca Não Corta o Fogo
Assírio & Alvim, 2008

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