«LEITOR QUE NÃO SE ZANGUE COMIGO, se a minha prosa não tem a felicidade de lhe agradar. Tu sustentas que as minhas ideias são pelo menos singulares. Isso que dizes, homem respeitável, é verdade; mas é uma verdade parcial! Ora, que fonte abundante de erros e equívocos são todas as verdades parciais! Os bandos de estorninhos têm uma maneira própria de voar que parece obedecer a uma táctica uniforme e regular, tal como a de uma tropa disciplinada que obedecesse com exactidão à voz de um único chefe. É a voz do instinto que os estorninhos obedecem, e o seu instinto leva-os a aproximarem-se sempre do centro do pelotão, embora a rapidez do voo os lance continuamente para além dele; de modo que esta multidão de pássaros, assim reunidos por uma tendência comum para o mesmo ponto magnético, continuamente de um lado para o outro, circulando e cruzando-se em todos os sentidos, forma uma espécie de turbilhão agitadíssimo, em que toda a massa, sem seguir qualquer direcção bem certa, parece ter um movimento geral de evolução sobre si mesma, resultante dos movimentos específicos de circulação próprios de cada uma das suas partes, e no qual o centro, tendendo perpetuamente a desenvolver-se, mas incessantemente comprimido, repelido pelo esforço contrário das linhas limítrofes que sobre ele pesam, está continuamente mais apertado do que qualquer dessas linhas, as quais igualmente o são tanto mais quanto mais se avizinham do centro. Apesar deste modo especial de rodopiar, os estorninhos nem por isso deixam de fender com rara velocidade o ar ambiente, e de alcançar sensivelmente em cada segundo um terreno precioso para o termo de suas fadigas e final da sua peregrinação. Tu, do mesmo modo, não dás atenção à maneira estranha como eu canto cada uma destas estrofes. Mas podes ficar persuadido de que as tonalidades fundamentais da poesia nem por isso deixam de conservar os intrínsecos direitos sobre a minha inteligência. Não generalizemos a partir dos factos excepcionais, não peço mais do que isso: no entanto, o meu carácter está na ordem das coisas possíveis. Sem dúvida que entre os dois termos extremos da tua literatura, tal como tu a entendes, e da minha, há uma infinitude de intermediários e seria fácil multiplicar as divisões; mas não haveria qualquer utilidade nisso, antes o perigo de atribuir algo de estreito e de falso a uma concepção eminentemente filosófica, que deixa de ser racional logo que já não é compreendida como foi imaginada, isto é, com largueza. Tu sabes aliar o entusiasmo e a frieza interior, observador de humor concentrado como és; enfim, por mim acho-te perfeito.... E tu não me queres compreender! Se não estás de boa saúde, segue o meu conselho (é o melhor que possuo à tua disposição), e vai dar um passeio pelo campo. Triste compensação, não te parece? Depois de teres tomado ar, vem de novo ter comigo, porque terás os sentidos mais repousados. Não chores mais; não queria desgostar-te. Não é verdade amigo, que até certo ponto os meus cantos conquistaram a tua simpatia? Ora, que é que te impede de transpor os outros degraus? É invisível a fronteira entre o teu gosto e o meu; nunca poderás determiná-la - o que prova que também esta fronteira não existe. Reflecte pois que então (e isto é só um aflorar do problema) não seria impossível que tivesses assinado um tratado de aliança com a teimosia, essa agradável filha da mula, fonte tão rica da intolerância Se eu não soubesse que não és parvo, não te faria semelhante censura.»



Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont
Cantos de Maldoror
Fenda, 1988
Tradução de Pedro Tamen

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