vou partir
como se fosses tu que me abandonasses
o último sonho que tive era estranho
via o fundo límpido duma rua estreita
que desembocava num largo iluminado
havia leões empalhados nos passeios em areia solta
já não me lembro bem
parece que uma mulher avançava com um envelope na mão
estendia-mo e gritava
mas eu não conseguia perceber
insultava-me muito provavelmente
tinha a cara escondida por um pano branco bordado
apenas via a sua enorme boca a abrir-se
e furiosamente engolir a púrpura do ar
que envolvia as cabeças reclinadas dos leões
ouvia o buzinar nervoso dos carros
exactamente como se ouvem agora
mas não conseguia vê-los
depois
um rapaz apareceu a uma esquina e reconheci-te
uma voz gravada na memória acompanhava-nos
quando nos dirigimos um para o outro
em câmara lenta
ouvíamo-la sussurrar: procuro-te
no interior das penumbras no esquecido sal
das casas abandonadas à beira-mar
procuro-te no perfume excessivo do mel
armazenado pelas abelhas no entardecer das pálpebras
vem
mergulha as mãos nos troncos das árvores
suspende a noite da longa viagem
estás a naufragar
o espelho quebrou-se e tu já não reconheces as paisagens
o corpo estilhaçou-se
tua presença só é visível nas fotografias dos barcos
as quilhas são a tua memória longínqua das Índias
vai
com os pássaros de bicos exuberantes e sonha
e estende o corpo cansado nos intervalos da erva fresca
onde alguém costurou pedras brancas na orla das grandes rotas
a cidade espera-te com os cais de madeira
junto ao rio abre as mãos toca nos corpos com os lábios
agarra-os dentro de ti
até que da terra lodosa brotem especiarias
porque só longe daqui acharás o que falta da tua identidade
só longe daqui conhecerás o sangue e talvez a felicidade
inundando um breve instante a noite de nossos desastres
só longe daqui
terás a consciência da quotidiana morte de Deus
repentinamente a voz cessou de se ouvir
eu tinha na palma da mão uma quantidade de comprimidos mortais
depois a voz fez-se ouvir a espaços irregulares: pobres unhas
pelas amarras húmidas dos lençóis rotos
barcos
velas sem sol papel pintado descolando-se das paredes
silêncio espesso sarro da noite
uma viatura arrasta-se boceja no asfalto
o corpo treme cintila
resíduos de cidade ruínas da pele buenas noches
buenas noches mi amor
lençóis floridos ranho cabeças de cafres
pingue-pongue de torneira avariada esferas de flipper
noches buenas noches
barcos despedaçados bolor da memória
da memória da memória da memória
tinhas a cara mascarada com sangue quando a voz silenciou
a mulher ria
eu corria para ti sem conseguir alcançar-te
sentei-me na cama
veio-me do fundo da idade o momento em que nos conhecemos
resolvi levantar-me a meio da noite e escrever-te esta carta
lembro-me que tínhamos fome havia três dias
encostada ao mármore da mesa-de-cabeceira dormia a fotografia
e o maço de português suave filtro
a escuridão não era só exterior
conhecíamo-nos pelo tacto e pelo olfacto
tornámo-nos murmurantes
e tu refulges ainda no escuro dos quartos que conhecemos
cruzámos olhares cúmplices
falámos muito não me recordo de quê
e no calor dos corpos crescia o desejo
caminhámos pela cidade
eu metia as mãos nas algibeiras
onde tacteava tudo o que guardara e possuía
um lenço uma caixa de fósforos um bloco de notas
sentia-me feliz por quase nada possuir
a imagem azulada de tuas mãos flutuava diante de mim
gesticulava para me dizer que estávamos vivos
e apaixonados
escrevo-te
pelo corpo sinto um arrepio uma vertigem
que me enche o coração de ausência pavor e saudade
teu rosto é semelhante à noite
a espantosa noite de teu rosto!
corri para o telefone mas não me lembrava do teu número
queria apenas ouvir a tua voz
contar-te o sonho que tive ontem e me aterrorizou
queria dizer-te por que parto
por que amo
ouvir-te perguntar quem fala?
e faltar-me a coragem para responder e desligar
depois caminhei como uma fera enfurecida pela casa
a noite tornou-se patética sem ti
não tinha sentido pensar em ti e não sair a correr para a rua
procurar-te imediatamente
correr a cidade duma ponta a outra
só para te dizer boa noite ou talvez tocar-te
e morrer
como quando me tocaste a testa e eu não pude reconhecer-te
apesar de tudo senti a mão sabia que era a tua mão
mas não podia reconhecer-te
sim
correr a cidade procurar-te mesmo que me afastasses
mesmo que nem me olhasses
mesmo que me dissesses coisas que me
mesmo que
e ter a certeza de que serias tu depois a procurar-me
correr a cidade com o corpo sedento
a noite esgravatando a pele
bebendo nas veias as poucas forças que me restam
uma lâmina pelos sonâmbulos asfaltos
onde morrem ambíguos nomes de corpos sem sexo
o veneno agindo dos pés para a cabeça
as mãos encharcadas de chuva tacteando um século qualquer
o sangue a chuva a memória desses dias tão difíceis
a noite a lambuzar com violência os rostos magoados
visões de sonhos ainda não sonhados
dilaceradas imagens de bocas coroadas por flores de aço afiado
ouço outra vez uma voz e agora não estou a sonhar
mas a escrever-te
e ouço-a em mim como se estivesse gravada
e a fita do gravador gasta pelo uso: a tua vida
será feita de embarcações e de solidão
beberás a secura dos cabos distantes
conhecerás ilhas de saliva profunda
olhar-te-ás nas fotografias
que as unhas aceradas do tempo arranharam
e para lá dessas imagens envelhecidas tudo sangra e dói
a tua infância a tua adolescência e o medo
de não conseguires sobreviver ao estrume do país
avançarás pelo mar dentro
ferido por outros naufrágios imperceptíveis
descansarás
nas areias aveludadas da foz dalgum rio sagrado
e quando o mar se retirar
o sol e a lua virão tatuar sobre o ombro
a silhueta viva dum bicho estelar e a memória
essa parte calcinada da vida começará a doer e a latejar
navegarás pela cidade que adere aos dedos
como sarna mais antiga navegarás
com o escorbuto no coração transportarás o silêncio
e a escrita na fragilidade dos pulsos acorda
onde cintila a faca acorda o mar
está próximo o mar acorda
o mar acorda o mar acorda o mar
o mar
na gaveta onde o bolor cobriu a roupa guardo as fotografias
reparo como amareleceram suavemente os rostos
as mãos que seguram ramos de flores os cabelos os olhos
exala-se deles uma leve doçura cor de sépia
foram perdendo a definição esfumaram-se os contornos
numa das fotografias tens vestida a camisa de riscas azuis
noutras sorris olhas-me nos olhos
mas aquele sorriso não o que ainda ontem te vi esboçar
o sorriso que tens na fotografia morreu
no entanto está ali e fico perturbado quando o vejo
eu sei que nada está vivo na fotografia ou se repetirá
aqueles sorrisos aqueles instantes para sempre perdidos
a camisa às riscas votada à degradação lenta do papel
acabei por destruir as fotografias queimei-as
para que ninguém possa supor através delas
histórias a nosso respeito
e também para que minha mulher as não encontre
a única coisa que levo comigo é a cápsula de laranjada
atada a um cordão em couro deste-ma tu um domingo
quando passeávamos perto do rio
íamos ver o sol morrer nas águas
caminhávamos sem destino pela cidade
o crepúsculo atingia-nos com misteriosos desejos
seria inútil falar das razões da minha viagem
no fundo nada a justifica
embora a minha vida ultimamente seja um barco sem rumo
de vaga em vaga de ressaca em ressaca
fui arrastando o meu próprio naufrágio
mas ser-me-ia difícil falar-te destas catástrofes
prefiro calar-me para sempre ou enlouquecer
ou avivar a memória de certas visões aciduladas
enquanto te escrevo esta última carta
é também a última vez que penso em ti
sempre habitei este país de água por engano
estas planícies asfaltadas pelo tédio estes prédios de urina
estas paredes vomitadas
onde as diáfanas aves da solidão embatem e definham
deixam cair dos bicos fios de sangue e de cuspo que te evocam
vou migrando de corpo para corpo
sem nunca conseguir definir o voo complexo do meu
escrevo-te ainda lúcido
no entanto ignoro se chegarei vivo ao fim da noite
quem poderá afirmar que daqui a instantes
não atravessarei os espelhos impossíveis da noite?
ferindo o corpo rasgando borboletas de luz
no écran da cidade amanhecendo em mim
esqueço como me chamo
e tenho a certeza de que nunca mais nos veremos
mesmo no caso de eu permanecer aqui
neste país de água por engano
descobri que a morte calça o mesmo número de sapatos que eu
sabes
por vezes queria beijar-te
sei que consentirias
mas se nos tivéssemos dado um ao outro ter-nos-íamos separado
porque os beijos apagam o desejo quando consentidos
foi melhor sabermos quanto nos queríamos
sem ousarmos sequer tocar nossos corpos
hoje tenho pena
parto com essa ferida
tenho pena de não ter percorrido teu corpo
como percorro os mapas com os dedos teria viajado em ti
do pescoço às mãos da boca ao sexo
tenho pena de nunca ter murmurado teu nome no escuro
acordado
perto de ti as noites teriam sido de ouro
e as mãos teriam guardado o sabor de teu corpo
ah meu amigo
estou definitivamente só
estou preparado para o grande isolamento da noite
para o eterno anonimato da morte
mas perdi o medo
a loucura assola-me
preparo a última viagem às índias imaginadas
disseram-me que só ali se pode descansar da vida
e da morte
perscruto a razão profunda desta viagem
ou talvez seja já a torna-viagem o que vislumbro
e não valha a pena partir porque já estou de volta
sem o saber
hesito em deixar-te escrito mais que um simples adeus
de qualquer maneira por muito longe que me encontre
se pousares a tua mão sobre a minha testa senti-lo-ei
esse gesto aliviar-me-á de todas as dores
a manhã aproxima-se cortante
ouço barcos largarem do cais
preparo a lâmina
estendo as velas em agonia uma lâmina de vidro
para fender as águas imperturbáveis do dia sem bússola
destruo cartas papéis manuscritos outros sinais
destruo as imagens que me chamam e me querem reter aqui
releio estas poucas palavras para ti: child of the moon
debaixo das cerejeiras uma serpente antiga adormeceu
em tuas mãos de pétalas lunares
movem-se astros em cima da alba da pele
olharemos os insectos perfurarem a treva da noite
e tecerem claridades
mas já não tínhamos mais noite a desvendar
lembro-me
a cidade está cada vez mais rente à nossa separação
caminhamos em direcções opostas
ou melhor
eu caminho enquanto tu não existes
a noite aproxima-se com seus territórios de sombra e fábula
areias penumbras oscilantes apagando resíduos de corpos
teu corpo minúsculo arrefece dentro de mim
quando as feras despertam nos olhas abandono-me
à lama colorida dos terrenos vagos
dói-me a voz ao chegar aos lábios
os dedos penetram o metal cintilam
conchas abertas ao sonho
onde terei abandonado a nossa paixão?
um cristal flutua no enxofre de remotas cidades
compridos cabelos de jade espalham-se sobre o rosto
indecifráveis vegetações
o sonho torna-se exótico quando abres os braços
surgem nas pálpebras caudalosos rios
neles pouso a cabeça deixo-a flutuar
uma mulher anela aos ziguezagues pelos corredores da casa
vejo peças de vestuário espalhadas pelo chão
a mulher grita
corre à roda do quarto insulta os electrodomésticos
abre o frigorífico
atira com os legumes congelados ao chão espezinha-os
esborracha-os contra as paredes chora
ri pega numa camisa de riscas e rasga-a em mil tiras
recomeça a correr
entra na casa de banho e abre todas as torneiras
abre as janelas e ri
e lambe as vidraças sujas
derrama açúcar dentro do telefone
e por cima das petúnias de plástico fluorescente urina
mas tudo isto se passou há muito tempo noutro lugar
noutro corpo
viro-me para o sul de nossos corpos e descubro uma ilha
percorro demoradas estradas de tabaco e o ouro envelhecido
dos caminhos alquímicos desvendo
os sinuosos mistérios da seda e da pimenta as grandes rotas
do vento bebo o amargor ela vida errante
onde a mulher dorme sossegada sobre a cama desfeita
o telefone toca obsessivamente toca
um corpo translúcido surge do papel em que te escrevo
revela-se-me a água dos gritos repetidos
um foco de luz incide-me sobre a boca fechada
procuro-me na silenciosa cinza de tua memória
pela casa atravessada de ecos de fogos postos respiro
dificilmente ouço zumbidos de flipper
o quarto povoa-se de rostos alados mecânicos olhares
pequenas garras de ar
desfazem-se em finos cordéis de terra
a mulher avança sob o peso da tempestade
aqui está sempre a chover
o frasco de barbitúricos conta-me o falhado suicídio
a mulher tem o teu rosto ou o meu já não sei
a luz percorre-te o corpo
é noite há muito tempo
fixo um ponto invisível da parede estou sentado na cama
escrevo-te
e tenho a certeza de que ninguém será capaz
de roubar a minha morte
porque eu moro neste país líquido por engano
e tenho dificuldade em imaginar o sono fora de meu corpo
se quiseres vem dormir perto de mim vem
sonharemos um país fabuloso junto ao coração das árvores
vem
antes que trema o corpo no frio sem deuses e na loucura
quase amanhece
lá fora as avenidas mantêm-se vazias
subúrbios sonolentos no refrão dum brutal rock'nd roll
vicious you are so vicious
baunilha azul nos lábios orgasmo de baunilha
tarzan de pastelaria um cigarro de chocolate come
chocolates come sentado no cimo do ice cream toute la nuit
fuck fuck
fuck em diferido
os eléctricos já passaram e as mãos já não são as minhas
têm sede
sede de nudez.
mas vou partir deixar-te aí
como se fosses tu que me abandonasses
viajar antes da alba partir
para longe destes inúteis dias
eu
pobre de mim
navegador da noite próxima da morte
vou acendendo no sangue os sonhos dum povo que não sonha
eu
arquipélago de cinzas oceano do nada
vou de veias inchadas e penso que talvez não valha a pena
mas vou
preciso encontrar o lugar certo para o nosso amor
queres vir comigo?
já avisto da gávea inquietantes iluminuras de rostos de afogados
mãos antigas como rochedos peixes fantásticos
bocas aflitas a tua boca mordendo
o cordame avariado pelo sal
ah meu amigo
eis o sofrimento de meus lábios gretados pelo sarro oceânico
eis minhas unhas doentes protegendo o sexo aberto
às monções aos ventos adversos às vagas rumorosas
vou abandonar-te no lado claro da noite
onde o tempo é um fio de luz rasgando a espessura do corpo
vou partir
com estas manchas de frutos sorvados no coração
para sempre vagamundo
no corredor de espelhos sem tempo deixo-te o sonho
onde já não arde nenhum rosto nenhum nome
nenhuma voz da silente treva
nenhuma paixão
abandono-te para além da linha nítida da manhã
onde dizem que tudo existe se transforma e continua vivo
longe
muito longe desta inocente memória das Índias
Al Berto
O Medo
Assírio & Alvim, 2005
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