Para além da sombra

Vejo a sombra na substância rubra do crepúsculo.


Fecho os olhos e

ardem os limites.


Há luz dentro da sombra, corre

a centelha debaixo das suas asas imóveis.


São mortais as medulas

ocultas na luz.


Atrás da obscuridade estão os rostos que me abandonaram

Eu vi a sua pele trabalhada por relâmpagos. Agora

já só vejo, no instante amarelo,

o esplendor das suas longínquas pálpebras.


Pus água e cinábrio no meu coração e nas minhas veias

e vi a morte para além da púrpura.


Agora os meus olhos vêem no passado: grandes flores imóveis, mães
atormentadas nos seus filhos, líquenes fertilizados pela tristeza.

Já não há mais que rostos invisíveis.


Cansei-me inutilmente

nas recordações e nas sombras.


Uma pomba imóvel

nas suas artérias e nos seus ossos.

Aguarda já a agonia natural envolta

em pétalas de sombra.


Talvez o silêncio dure para além de si mesmo e a existência seja só
um grito negro, um alarido diante da eternidade.


O erro pesa nas nossas pálpebras.



Antonio Gamoneda
Ardem as perdas
Quasi Edições, 2004
Tradução de José Bento



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