O cão, atacado por uma forte dor de dentes,
desata a morder. E tudo o que lhe aparece pela frente
é assim posto a sangrar. Homens, mulheres, crianças,
padres, freiras, freiras sem hábito, putas com ou sem
hábitos, omoletas de fiambre, centro comerciais, uma
ou outra pulga, monges habituados, putos desabitados,
gorgulhos de sífilis, em resumo, Lisboa em peso.

De onde vejo o tejo, rapidamente transformado em mar
vermelho, carrega a custo barquinhos de trapo e de
papel que trazem no ventre escassas invasões de dimi-
nutos chineses, cada qual segurando na mãozinha uma
garrafa de coca-cola, a bebida milagre por fim autori-
zada como substituto eficaz de arroz.

Lisboa é uma mulher espezinhada, que procura em
vão o calcanhar capaz de sexo masculino, um toque
de ternura outro de sapato, para abrir parêntesis no
machismo transitório do tráfego lento, e duro, e lento
atado a si mesmo como todos os homens se atam ao
umbigo.

Cidade que não te queixes. Disseram os doutores ao
trepar-te pela virilha que viria um dia, ainda distante,
sejamos prudentes, para levantar um cheiro a maresia
capaz de subverter a lata e berrar de dia. E esperas,
de perna fechada, até morrer de velhice e de virgin-
dade prematura.

Para o exercício de manutenção da calma, convém
tratar urgentemente as dores de dentes nos cães.


Manuel Cintra
Empare(dar)
& etc, 1984

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