És um bicho tão pobre como eu, um bicho com uma expressão
enigmática, e por isso és um bicho igual a mim, sem que nenhum de nós
tenha um terceiro para estabelecer uma relação de semelhança. Dizes-me:
não posso olhar para trás e ver-te à minha frente. Somos estrangeiros numa
penúria extrema como um mendigo que espera por uma terrina de sopa
na porta de uma casa abandonada. Um bicho inclui os homens no mesmo
círculo de convivência com os astros e as pedras. Ávido de entender a
anunciação de uma matéria que não opere a destruição atómica, a olhar
cada um desesperadamente para fora de si, um bicho que está fora do
tempo vê o intemporal e também isso o faz infeliz. Um bicho está sempre
a ser outro, tu interpões-te entre metade dos meus eus e deixas a outra
metade de fora e depois queres fazer irromper-te do teu embaraço de
bicho e és um relâmpago furioso, tremes e desenhas, sim, é verdade que te
leio como a minha verdade secreta, mas nunca te posso dizer eu. O delírio
de um bicho é incompleto e passageiro e por isso o que vejo de ti é um
pressentimento do que tu és.

Isabel Aguiar Barcelos
Bichos Instantâneos
Poemas de António Ramos Rosa e
Isabel Aguiar Barcelos
Prefácio de Hélia Correia
Quasi Edições

Sem comentários: