A casa foi abandonada, permanece vazia. duma janela avista-se outra janela. o interior é húmido e escuro. onde uma porta enquadra outra porta não se pressentem mais sinais de vida. apenas flutuam aromas, presenças ténues de corpos. o olhar demora-se sobre as geometrias musgosas do tectos. uma sombra desliza junto ao piano, o estuque esfarela-se, cai. ouve-se um rumor misterioso de poços, de insectos por dentro das paredes. o olhar aprende a ver na penumbra esverdeada das salas. apura-se o ouvido e o tecto quase consegue delinear a presença dos mortos. perco o medo, caminho de corredor em corredor sem acender uma única luz. consigo chegar à porta do quarto da infância, abro-a. o mar pressente-se a partir de um ângulo de treva, rente à cama. alguém fotografa alguém. o espelho acende o meu reflexo. não me reconheço nele. existe uma saída secreta que nunca utilizo, nem mesmo na fotografia. cresci com a casa. a infância desapareceu num recanto quase inacessível da memória. nada resta da travessia alegre dos corpos que nela viveram. nem mesmo se encontram sulcos de chuva nos soalhos ainda em bom estado de conservação. nem ossos de alguma ave que tenha servido de alimento, nem cinza ou pedaços de carvão, restos de gordura, nada. a luz continua a entrar pelas frestas das janelas mal fechadas. a noite atravessa a casa até aos alicerces de sal. a desolação insinua-se até à medula das madeiras. o olhar esconde algumas imagens da casa, únicos sinais guardados na meticulosa memória de quem com ela viveu.

Al Berto
Vigílias
Assírio & Alvim, 2004

Sem comentários: