António José Forte




Ligado ao movimento surrealista em Portugal, António José Forte (1931-1988) deixou-nos uma obra breve, mas que claramente o afirma como um dos poetas mais em destaque, não só pela coerência literária que assumiu e antes pelo rigor e expressividade do próprio “discurso” poético, como se patenteia em Uma Faca nos Dentes, livro reeditado, com desenhos e fotografias da pintora Aldina Costa, sua companheira de muitos anos.


Trata-se realmente de um livro quase esquecido após a sua edição em 1983 e se afirma como um marco pessoal no pleno entendimento do que foi o surrealismo poético em Portugal. Na sua “nota inútil” à laia de prefácio, Herberto Helder declara que “a voz de António José Forte não é plural, nem directa ou sinuosamente derivada, nem devedora. Como toda a poesia verdadeira, possui apenas a sua tradição. A tradição romântica. No mesmo estrito e mais expansivo e qualificado registo. Uma tradição próximo de nós esclarecida pelo surrealismo, abrindo para trás e para diante: imemorial, dinâmica. Uma maneira de entender-se uma tradição essencial”.
Ora, o sentido da palavra em António José Forte é o da subversão das ideias, das imagens de arrepio, da tensa e lúcida atenção que é dada a um quotidiano suportado em amargura, de faca nos dentes (e nunca na liga), nesse “discurso” aparente de tirar partido da linguagem dos gestos, ideias e sentimentos: “ainda não há camas só para pesadelos / ainda não se ama só no chão / ainda não há uma granada / ainda não há um coração“.
Mas nada escapa no limite estrito do verso ou da imagem, nada se mostra excessivo ou desnecessário, porque as palavras revelam o sentido de uma consciência de peito aberto à vida: “Sai de novo para o mundo. / Fechada à chave a humanidade janta. / Livre, vagabundo / dói-lhe um sorriso nos lábios, canta“. E é nas possíveis leituras cruzadas ou no eco de outras vozes que nos chegam, na atenção prestada ao mundo em redor e na carga emotiva do que dele se invoca. “Dente por dente: a boca no coração do sangue: / escolher a tempo a nossa morte é amá-la”.
É por aí que os textos e poemas de Uma Faca nos Dentes se nos revelam, ainda com redobrada surpresa e alegria, como punhal arremetido contra o cerco que tanto bloqueia, no desejo libertador de atenuar o peso do quotidiano e reabilitá-lo na justa dimensão do que lhe confere outro sentido. Talvez ainda (e sempre de forma coerente) entre a perversão do próprio discurso e a utopia ideológica, pela afirmação desse tom muito próximo de um revivificante surrealismo poético, como acentua Herberto Helder. Mas um pouco como Breton, poderá dizer-se que escrever para António José Forte é “aquilo que sabe fazer melhor” - e por isso escreveu pouco, talvez apenas o necessário para deixar vincada a sua presença e ter a certeza de haver “gente que nunca escreveu uma linha que fez mais pela palavra que toda uma geração de escritores”. Porque a expressão de António José Forte, no que revela de paradigmática na clara filiação surrealista que não enjeitou, se afirma não só no conjunto de poemas, mas nos textos de intervenção que evocam outras presenças para justificar esse fascínio e a carga de uma perversão sadia, próxima da ironia mordaz e acintosa, sempre inteligente, endereçada aos “profissionais da nossa esperteza literária”, que se observa em muitas páginas deste livro. E da “presença” de António Maria Lisboa à “ausência” de Jarry perpassa nas páginas de Uma Faca nos Dentes toda uma imaginística e uma visão do quotidiano que se valoriza e redescobre nas entranhas e intenções de rebeldia, devastação e insubordinação desse mesmo quotidiano: “Não estranheis os sinais, não estranheis este povo que oculta a cabeça nas entranhas dos mortos. Fazei todo o mal que puderdes e passai depressa”.
Por isso, este livro agora reeditado surge como a voz renovada de um surrealismo que nada perdeu do sentido superiormente poético da vida nem deixou envelhecer o seu carisma de directa intervenção cultural. E só por isso se deve assinalar a reedição de Uma Faca nos Dentes, em que António José Forte retoma o “discurso” nunca interrompido pelo tributo devido ao surrealismo, mesmo que o seja só à escala e dentro dos nossos limites.Mas a essa escala e nesses limites, pela atenção e a natural agressividade do mundo que nos rodeia, num canto e voz tão peculiares, os poemas e textos deste livro confirmam assim que o poeta de 40 Noites de Insónia continua ainda como referência passados alguns anos sobre a sua morte física.


Obra publicada:

Noites de Insónia de Fogo de Dentes numa Girândola Implacável e Outros Poemas (1958)
Uma Rosa na Tromba do Elefante (1971) – Livro para crianças
Uma Faca nos Dentes (1983) – Prefácio de Herberto Helder e desenhos de Aldina
Azuliante (1984)
Caligrafia Ardente (1987)
Corpo de Ninguém (1989)
Uma Faca nos Dentes (2003) – Reedição com inéditos
Mano Forte – Correspondência entre Luiz Pacheco e A. J. Forte.

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