(gosto deste mundo que mais não é do que o arremedo de um mundo, desta luz que não se esbate nem cresce, deste tempo em que ninguém morre, desta história que começa quando entro na sala e acaba quando ela sai, fixa na ausência de tempo.
Posso ficar aqui toda a noite, de luzes acesas,posso pagar aos criados para ficarem aqui toda a noite, a servir clientes, a quem posso dar todas as refeições, posso prolongar tudo isto, esta paragem, posso fazer crescer um tempo parado,)
...
não me grites a dor ao ouvido minucioso, não tenho paciência para tragédias degradadas. deus e o sexo são os meus únicos transtornos. uivo para deus a oração sempre interrompida, amo a mão do pedreiro, não amo o pedreiro, mas os seus dedos, precisos como uma lixa, no meu ombro, ou entre as minhas pernas, a sua voz a dizer: que pele macia, quase uma seda. o desejo é uma descrição. quando bebo o chá, deitada, ele escorre-me pelo queixo, para a camisa de dormir, e expande-se como desamor. a menina não tem maneiras: diz-me o pedreiro. empobreço o chá assim vertido, sujo-me toda, os dedos peganhentos, o queixo peganhento, minha mãe diria: emporcalhas-te, e é isso, o meu corpo é um corpo de nódoas, o pedreiro olha-me, não me olha, observa-me, e diz: tens um grúmulo branco ao canto da boca. e cala-se. eu levo o dedo ao canto da boca e tiro o grúmulo branco. e ele diz: tens uma nódoa negra no ombro. e toca com o dedo na nódoa negra. e eu espero. e ele respira na espera, respira na espera, respira a espera. e, depois, a sua mão pousa-me na cabeça e começa a mover-se, para baixo, pelas costas e pernas, até aos pés:
- és tão pequenina.
eu digo:
- sou anã,
ele repete:
- és tão pequenina,
a mão está parada no meu pé, que se aconchega nela, e parece segurá-lo,
Rui Nunes
A boca na cinza
Relógio d'Água, 2003
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