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estou a dizer caralho repetidamente.
atrás de mim vejo uma embarcação em ruínas,
o sonho assume uma amplidão soturna, as bocas cospem fogo.
depois a cidade cai, com estrondo.

vem uma mancha negra ou azul, como petróleo,
e contamina as minhas mãos. principio
a perscrutar-te os olhos sem te reconhecer.
continuo a dizer caralho, repetidamente.

depois o sonho alonga-se numa queda sem fim.
vai a cabeça à frente do corpo, coberto
por uma toalha vermelha. da boca voam
insectos gigantescos, maiores que a sua sombra.

a treva cobre tudo. chega um vulto e diz que não se pode
regressar por esse caminho, há que seguir em frente.
um caminho de longos silêncios e longas lâminas
intimida os que querem passar.

a mão intratável sobrevoa-me os ombros.
tenho as omoplatas pontuadas por uma claridade verde [esmeralda.
estou a chorar, na antiga casa, o velho alpendre.
volto a cabeça e vejo o teu sexo, a gruta escarlate e quente.

a gruta tem um enorme poder de sedução,
sou ainda uma criança e fico em silêncio a observar.
o meu silêncio pesa mais do que o peso da minha alma.
passam gansos, peixes brancos. digo repetidamente caralho e [não me calo.

vem alguém e entorna leite no chão da cozinha,
um homem vocifera e ergue-se com uma corda ao pescoço
e uma faca na mão. volto a repetir: caralho, caralho, caralho.
passa um carro na rua a buzinar estridentemente e acordo, num [sobressalto terrível.

depois, tudo é silêncio avassalador. há passos surdos no corredor
contíguo ao meu quarto. oiço um alfinete cair, a mãe a gemer.
a cama range, o pai volta-se nos lençóis, para outro lado,
outra direcção atroz.

a casa está submersa num silêncio sólido, irreparável.
estou muito só e tenho frio, embora esteja um calor abrasador.
ouve-se um cântico ao longe. o som de asas a roçar nas paredes.
digo: caralho, caralho, caralho, num sussurro infinito, até perder [o fôlego.



Amadeu Baptista
Negrume
& etc, 2006

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