O secretário

Gerei dentro de mim, sem que disso tenha tido consciência desde o início, uma espécie de filho que depressa em muitas circunstâncias veio a tomar o meu lugar. Passei a partir dessa altura a agir por delegação, como se, apropriando-se ele das minhas ideias, as executasse antes de mim, mas de tal modo que só posteriormente eu dava conta de que não havia sido eu quem as pusera em prática. Tal foi o caso, por exemplo com a escrita. Como se ele me lesse no espírito o que eu gostaria de escrever, antecipava-se-me, tendo sido assim que, entretanto, a mim vi atribuído livros cuja autoria lhe pertence.
Jamais - faço questão em sublinhá-lo - no próprio instante de sua redacção me apercebi dessa transferência, de que só depois vários indícios me deram uma noção, dos quais o tom incipiente de que todos esses textos participam não é decerto menos relevante. Vê-se que se trata, se não de uma criança, pelo menos de um adolescente, o seu autor.
Não é sequer possível saber qual de nós neste momento faz correr sobre o papel a esferográfica, de tal forma mesmo aos meus olhos ele se faz passar por mim, levando a astúcia ao ponto de se invectivar. Talvez na realidade eu nunca venha a escrever uma só linha que seja, talvez esteja condenado a do que nesse sentido me aflorar o espírito jamais poder dar senão uma imagem distorcida pelo facto de entre o espírito e o papel inexoravelmente se interpor a mão de tão indesejado secretário.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

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