Farei a noite, a vertigem dos corpos,
até que a exaltação atinja um lugar extremo
e tudo seja iniciado.
________________________A punção da noite
abrirá espaço para uma estrela. E a luz derramar-se-á.
O mundo será o meu oráculo.
________________________________Preciso começar-me.

___________ Vejo a nítida falésia de sombra estremecer
e estrelas entrarem pela cabeça do morto.
Ilumina-se o crânio, por dentro, e aos poucos
o corpo recomeça a fluir. Vejo o morto correr, nu,
cintilando pela noite. Corre de um instante impossível.
___________ Mas ouve: a borboleta que ressuscita os mortos
não deve ser cativada. É perigoso conter essas forças
vivas como pulsos. É perigosíssimo
o fogo.

_________________ Sei como é voluntária a encenação
da minha queda. Porque a cada grito no abismo corresponde
uma sabedoria no canto. Que entra na voz,
na voz que grita, na voz que canta - é um estranho
jogo de ecos este, escavando fundo na treva, ouro
que irrompe, musical. E é tão inesgotável esse
árduo filão do mistério.
_____________ É importante manter os obstáculos no caminho,
e fazer o caminho. Que seria do caminho senão os obstáculos,
senão uma prática de superação?

______________________Há um casa mais abaixo.
Desço, entro na câmara escura dessa casa, fecho a porta,
e revelo, revelo, não paro de revelar - o meu rosto.
_______ Porque quando sobreponho as imagens,
vejo acender-se a invisível malha do espaço, ardendo,
exponde os alicerces do tempo.

______________________ E o morto regressa
à visão. Reuniu os ventos e ameaça derrubar o céu.
Diz: não desistirei de exercer a minha ignorância,
preparar-me para outros saberes: não abdicarei
de uma vida copiosa - é um manifesto feroz.
_____________ Irei para a floresta ou para o deserto,
para um qualquer lugar inóspito onde possa
experimentar, aterrorizado, a pureza
da minha voz.
Há muito que desejo romper
este cordão umbilical, ampliar-me, e agitar
as esferas, os campos, as possibilidades
de transparecer um poder obscuro, terrível,
o poder da minha própria
morte.

____________Porque: que é uma coisa senão
o lento acordar da sua morte, das suas mortes?
Digo que cada coisa é um caminho para fora
de si mesma. Que são intermináveis
as coisas sucessivas.
____________Digo que a voz do morto soava assim
pelo corpo de dedos fulminados. Batia na perfeição,
como a cadência precipitada da chuva
- um som perturbador e insistente, belíssimo.
________ E eu estava aterrado, dominado por fúrias,
e fiz erguer o meu braço. Era um gesto,
um movimento deflagrado por
clara inocência.
___________E a sabedoria moveu-se
da boca para o sangue.



Vasco gato
Lúcifer
Alexandria, 2003

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