Que merda afinal vem a ser esta? É, pelos vistos, uma merda que está cada vez pior. Deve ser, por conseguinte, o agravamento de uma merda que já esteve melhor. Um endurecimento da situação, em suma. É que, embora não possa haver, logicamente, merdas que estejam sempre melhores, pode concluir-se ser sempre melhor a merda que se tem hoje (mesmo que esteja cada vez pior), do que a merda que vai haver amanhã, a qual irá ser, segundo este raciocínio de merda, ainda pior.
A pergunta frequente_ Como é que vai essa merda?_ não é, no contexto sociolinguístico português, uma pergunta no verdadeiro sentido do termo. Trata-se simplesmente de uma espécie cerimonial de senha, passa exclusivamente com o fito de obter do outro a resposta apetecida do está cada vez pior.
As pessoas sofrem, é certo, com esta merda. Faz por isso sentido perguntar a um amigo Então estás melhor do Portugal?, tal qual se tratasse de um fígado agonizante ou de uma coronária em vias de dar o bafo.
E tal como as doenças mais esquesitas, Portugal é uma condição que só no estrangeiro se trata, necessitando invariavelmente de longas estadas, longe da Pátria-Mãe ou, como proverbialmente se metaforiza a dura separação, longe desta merda toda.
Antigamente, se bem se lembram, esta merda não ia estando, como agora, cada vez poior. O mais frequente era aquela merda estar rigorosamente cada vez mais na mesma. Qual era o cidadão de pendor ordinário que nesses tempos não gostava de declarar que
Bons tempos, sfinal, esses em que a merda não piorava, limitando-se a ficar na mesma! Hoje já nenhum cidadão se atreve a repetir a frase vetusta, acerca daquela merda, em que só as moscas mudavam. Porque esta merda, em contrapartida, já não é para ele a mesma. As moscas há muito deixaram de realizar esses exercícios periódicos de render da guarda. Imagina-as, decerto, a cochichar entre si, em desesperados acordes de mosca Ó pá, esta merda está impossível. Fugiram, adivinha ele, quem sabe se à procura de outras merdas.
Uma merda para os portugueses o que é? É tudo. Basta dizer num recinto público É tudo uma merda para ver abanar com compungida concordância todas as cabeças presentes. Se se falar noutra coisa qualquer, não há duas oponiões semelhantes. Contudo, instala-se a unanimidade em torno dessa ideia-matriz, segundo a qual, é infalível, é tudo uma merda.
excerto da crónica "merda"
de miguel esteves cardoso
em: a causa das coisas
Assírio & Alvim
1987
1 comentário:
MEC no cume da forma.
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