Estou todo no mês de agosto
Estou escarranchado no lombo nutrido de agosto
sentado à mesa de um café envolto no manto de múltiplas vozes
olhando pela janela uma toalha de mar e a terra ao fundo
debaixo do céu azul e branco do sol e do vento
café e vozes céu terra e mar tudo coisas talvez de agosto
objectos que o deus deste mês se porventura dada a fartura houver também um deus para os meses
utiliza para que assim toda a gente possa falar univocamente de agosto
e agosto não seja o nome frio dos números
mas seja um tempo e a orla da água que banha os pés desse tempo
e as coisas que existem na mão aberta desse tempo
Agosto não é o oitavo mês do ano
as ferias há muito previstas e marcadas o sitio
de certos rostos por um instante resplandecentes mas cedo bebidos pelo esquecimento
talvez para o ano vindos na vaga de um novo mês de agosto
Agosto são muitos jornais vagarosamente lidos
de páginas uma a uma passadas como os trinta e um dias deste mês
agosto é o espaço do pensamento da boca boquiaberta
do sol outra vez usado como o único relógio de pulso
Agosto é o regresso dos emigrantes o mês da morte na estrada dos emigrantes
de uns homens que antes eram portugueses e hoje são emigrantes
e voltam a estas paragens como as aves às terras serenas e avaras do norte
Agosto é a estrada estreita que o mar enfia nos campos
como faca que fura sebes de canas campos de couves
e ensombra ainda um pouco mais a sombra de certas árvores
Agosto é eu estar aqui a trazer as mangas arregaçadas
é envelhecer ao sol na dispersão distraída de determinados gestos
é saber que estou de momento separado de secretárias com muitos problemas em suspenso
que me sento numa pedra e oiço uma música e reconheço a minha forma mais frequente de me sentir vivo
embora depois complique o que sinto e diga talvez que me sinto feliz
Ruy Belo
de Toda a Terra, 1976
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